quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A COMPLEXIDADE DE CAPITU: A IMPOSSIBILIDADE DE DESCRIÇÃO EM DOM CASMURRO

O século XIX foi marcado por uma transição literária quando o Romantismo deu lugar ao Realismo, refletindo mudanças sociais, políticas e culturais. 

No início do século XIX, o Romantismo brasileiro estava fortemente embebido de idealismo e subjetividade. Os escritores românticos buscavam expressar as emoções, exaltando o sentimento nacionalista e valorizando a natureza exuberante do Brasil.

O indígena, a natureza selvagem e o amor impossível eram temas recorrentes. A natureza no período romântico era muitas vezes idealizada e personificada como um espelho das emoções humanas. Os escritores fantasiavam a exuberância tropical brasileira e a associavam a sentimentos e estados de espírito.

Ademais, embora o Romantismo brasileiro abordasse questões sociais, como a escravidão, muitas vezes o fazia de maneira irreal e menos crítica. A sociedade era frequentemente retratada de maneira polarizada entre o bem e o mal.

Além disso, personagens arquetípicas, idealizadas e movidas por emoções intensas eram comuns no romantismo. Os heróis românticos muitas vezes enfrentavam desafios épicos, e o amor era frequentemente tratado de maneira fantasiosa e dramática.

Já na segunda metade do século XIX, o Realismo surgiu como uma resposta crítica ao idealismo romântico. Os realistas brasileiros, inspirados pelos ideais científicos e observação objetiva, buscavam retratar a realidade de maneira mais crua e objetiva. A sociedade, suas contradições e a psicologia humana tornaram-se foco central.

No Realismo, a natureza é frequentemente retratada de forma mais objetiva, como um cenário neutro. Os autores realistas brasileiros, como Machado de Assis, afastaram-se da idealização romântica e utilizaram a natureza como um elemento secundário em suas narrativas.

O período realista brasileiro, em oposição ao romântico, era mais engajado em críticas sociais. Autores como Machado de Assis exploraram as desigualdades, a corrupção e as contradições sociais, oferecendo uma visão mais cética e pessimista da sociedade brasileira.

Por sua vez, as personagens realistas eram mais complexas. As narrativas exploraram a psicologia dos personagens de maneira mais profunda, abordando as contradições internas, os conflitos morais e as fraquezas humanas.

Dessa forma, enquanto o Romantismo favorecia descrições exuberantes e idealizadas de personagens, o Realismo buscava uma representação mais fiel da sociedade, focando na análise psicológica e nas denúncias sociais. No entanto, é na obra de Machado de Assis Dom Casmurro que encontramos uma abordagem singular em relação à descrição de personagens, especialmente no caso da enigmática Capitu.


No contexto romântico, obras como Iracema de José de Alencar apresentavam descrições minuciosas, quase pictóricas, dos personagens, enredadas em metáforas e imagens sensoriais. A técnica de Alencar, ao pintar Iracema como "a virgem dos lábios de mel", criava uma aura de encantamento, estimulando a imaginação do leitor e gerando uma conexão emocional com a narrativa.

"Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas."

No entanto, Machado de Assis, em Dom Casmurro, adota uma abordagem completamente distinta. O protagonista, Bentinho, descreve Capitu apenas como possuidora de "olhos de ressaca", enquanto o agregado José Dias a caracteriza como tendo "olhos de cigana oblíqua e dissimulada". Essas descrições, longe das elaboradas imagens românticas, são tão ambíguas e enigmáticas quanto a própria imagem que o narrador passa de Capitu.

A impossibilidade de uma descrição detalhada de Capitolina reside na intenção realista de Machado de Assis. Enquanto o Romantismo buscava envolver emocionalmente o leitor com personagens e enredos, o Realismo almejava uma análise mais profunda da psicologia humana e uma exposição crítica da sociedade.

Machado, ao se distanciar do estilo romântico, critica implicitamente a tendência da literatura romântica, assim como fizeram - embora de forma mais explícita - Gustave Flaubert - em Madame Bovary - e Eça de Queirós - em O Primo Basílio. Esses autores exploram as consequências desastrosas de personagens (Emma Bovary e Luisa, respectivamente) que, iludidas por romances românticos, buscam uma realidade inatingível, levando a trágicos casos de adultério e autodestruição.

Ao manter a descrição física de Capitu em moldes mínimos, Machado desafia o leitor a abandonar a superficialidade da imagem externa e a entrar na complexidade da mente dos personagens. Em Dom Casmurro, a verdade sobre Capitu torna-se elusiva, assim como a sua aparência, deixando o leitor com a tarefa de interpretar as nuances e ambiguidades presentes na narrativa. 

Portanto, a impossibilidade de descrever Capitu de maneira definida é antes de tudo um objetivo estético e um propósito narrativo: o que vem à cabeça do leitor quando se lembra de Capitu? Uma complexa personagem em uma narrativa ambígua. Ela é muito mais do que um rostinho bonito, até porque nem seu rosto conhecemos. Mas, apesar disso, é a personagem mais imaginada e discutida de toda a literatura brasileira.

Jason Lima

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