domingo, 25 de fevereiro de 2024

E AGORA, JOSÉ SARAMAGO?

Na crônica "E Agora, José", de José Saramago, lançado aqui no Brasil no livro A bagagem do viajante, pela editora Companhia das Letras, um ajuntamento de crônicas publicadas em jornais portugueses entre 1969 e 1972, o autor estabelece uma conexão íntima com o verso de Carlos Drummond de Andrade que nomeia o texto do português, explorando a angústia existencial diante das adversidades da vida. Saramago reflete que o verso do poeta mineiro funciona como um estímulo para superar momentos de desânimo, contrastando-o com um incidente envolvendo um homem marginalizado em uma aldeia. A crônica, enquanto observação social, aborda a crueldade e indiferença humanas, culminando em uma reflexão pessoal sobre a insignificância dos próprios pesares diante da degradação humana.


O autor ressalta que, longe de ser um lamento, o verso drummondiano age como um impulso para resistir aos momentos de desespero. Essa perspectiva mostra a influência da poesia como uma ferramenta transformadora na vida do autor.

A crônica apresenta um incidente envolvendo um homem marginalizado, pobre, ferido e desprezado, destacando a insensibilidade daqueles que se divertem à custa do sofrimento alheio. É uma reflexão crítica sobre a injustiça inerente à condição humana.

Saramago distancia-se do caso de José Júnior, situando-se em uma noite tranquila com vista para o Tejo. Reconhecendo a futilidade de seus próprios pesares e raivas diante da degradação humana testemunhada, destacando a disparidade entre as preocupações pessoais e as questões sociais mais amplas.

Carlos Drummond de Andrade

Saramago encerra a crônica com uma pergunta retórica, "Será possível?", sugerindo uma indagação filosófica sobre a natureza humana e a possibilidade de superação das injustiças observadas. 

Coloco abaixo a crônica completa:


“E agora, José?”
José Saramago


Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas — ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: “E agora, José?”

José Saramago

Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente — “E agora, José?”

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota — matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta — e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas. 

Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. “E agora, José?” 


***

Nós precisamos do seu apoio!
Nosso blog foi pensado para podermos divulgar a língua portuguesa e as literaturas a todas as pessoas interessadas pelo tema.
Por isso, contamos com doações para mantê-lo funcionando e garantir que continuemos a oferecer conteúdo de qualidade.
Queremos que o nosso conteúdo seja acessível a todos, e suas doações nos ajudam a manter este espaço sem a necessidade de assinaturas ou taxas.
Qualquer valor é um contributo imensurável e inestimável!
Obrigado!

Jason Lima

Pix: 84 98165-7144




Referência do texto:
SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

#portugues #gramatica #literatura #josesaramago #literatura #profjasonlima #emmaislinguagem 

Nenhum comentário:

Postar um comentário