segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A GATA É UM GATO... E VICE-VERSA?

As desinências nominais em língua portuguesa são tradicionalmente definidas como morfemas flexionais que designam, mostram, revelam duas categorias para um nome (substantivo, adjetivo, pronome, artigo ou numeral): o gênero (masculino e feminino) ou o número (singular e plural).

A desinência se distingue do afixo (prefixo e sufixo) por ser este um elemento que promove uma nova palavra, enquanto aquela não permite a criação de uma nova palavra, mas apenas sua variação.

Assim, gato e gata são a mesma palavra com gêneros diferentes. Já gato e gatinho são considerados palavras diferentes.


Dessa forma, a expressão bastante difundida “concordo em gênero, número e grau” é, estruturalmente, ilógica, uma vez que a flexão (de gênero e de número) está ligada à concordância; o grau, por sua vez, liga-se à estilística e à semântica. Também é inapropriado dizer que uma palavra pode variar em gênero, número e grau, pois, como dito, variação ocorre na flexão; na derivação ocorre formação.

Porém, há algumas controvérsias. Se levarmos em conta que a desinência não promove o surgimento de uma nova palavra mas sua variação, afirmaremos, então, não haver mudança semanticamente significativa ao substituirmos uma desinência masculina por uma feminina.

Ao observarmos mais atentamente o par de substantivos gato/gata, notamos uma diferença que vai além do gênero. Ao mesmo tempo em que há a designação da espécie macho e da espécie fêmea de um tipo de felino, a forma gato também expressa o grupo total (machos e fêmeas) dessa espécie do gênero Felis; não é o caso de gata, que só representa o animal feminino.

Devido a isso, alguns autores sugerem não haver desinência de gênero em substantivos, apenas em adjetivos, numerais, pronomes, artigos. O que haveria nos substantivos, para esses autores, seria a mudança da vogal temática ou até mesmo a inserção de um sufixo.

Observe, como exemplo, a canção História de uma gata, de Chico Buarque:


Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram

O meu mundo era o apartamento
Detefon, almofada e trato
Todo dia filé-mignon
Ou mesmo um bom filé de gato

Me diziam, todo momento
Fique em casa, não tome vento
Mas é duro ficar na sua
Quando à luz da Lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite vão cantando assim

Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás

Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás

De manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria

Mas agora o meu dia a dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim

Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás




A canção conta a história de uma gata criada em um apartamento confortável e com uma vida cheia de mimos e tratos, mas que se sentia solitária e entediada.

Um dia ela se encantou pelos gatos que cantavam na rua, felizes, e resolveu se juntar a eles. Por causa disso, foi expulsa de casa e perdeu as regalias que tinha. Contudo ela não se arrependeu, pois descobriu a alegria de ser uma gata livre.

Observe que na canção há oposições iniciais entre gata X gatos; apartamento X rua; prisão X liberdade. A gata (gênero feminino) é assim chamada quando individualizada. Contudo, quando passa a pertencer ao grupo dos felinos da rua, passa a se nomear gato (mas no plural) por pertencer a um agrupamento de felinos, ou seja, uma representação do total desses seres. O grupo é usado em sua forma masculina (gatos).

O professor José Pereira da Silva, no artigo A inexistência da flexão de gênero nos substantivos da língua portuguesa, defende que em gato/gata há um sufixo e não uma desinência. Esta se encontra em adjetivos, por exemplo, pois serve para manter a concordância: gato bonito / gata bonita. É o adjetivo que concorda com o substantivo, não o oposto.

Além disso, em substantivos uniformes, não há alternância de vogais. Quem continua a concordar é o adjetivo (e o artigo nestes casos): o atleta rápido / a atleta rápida.

Outro fator que torna inconsistente a afirmação de ser a desinência a responsável por indicar o gênero do substantivo é a existência de pares que se opõem pelo acréscimo de um sufixo tradicional (conde/condessa) ou por um morfema subtrativo (vilão/vilã).

Vemos, portanto, que, no campo da morfologia, várias são as divergências. Há muito o que se analisar e pesquisar.


Jason Lima
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