A prática do close reading (algo como "leitura próxima, minuciosa) na interpretação literária é uma leitura meticulosa que busca desvincular os leitores do poder envolvente da narrativa. Ao focar na linguagem, imagens, alusões, intertextualidade, sintaxe e forma, o close reading proporciona uma forma de desfamiliarização, rompendo com práticas habituais de leitura.
Leitores frequentemente consomem textos pela trama, seguindo a experiência de leitura sem questionar os meios pelos quais trechos específicos atingem seus efeitos. O close reading traz uma pausa reflexiva, incitando os leitores a examinar técnicas, dinâmicas e conteúdo com precisão. Não se trata apenas de ler entre as linhas, mas de mergulhar mais fundo nas linhas, revelando os múltiplos significados que uma expressão, descrição ou palavra pode conter.
Embora seja possível realizar um close reading de trechos extensos, geralmente é mais eficaz escolher extratos curtos para demonstrar percepções. O close reading é a base para análises literárias mais profundas, permitindo descobertas interessantes e inesperadas, que destacam a vivacidade e a multiplicidade da linguagem.
Na crítica literária, o close reading concentra-se na interpretação cuidadosa e sustentada de trechos breves. Sua ênfase no singular e específico, em detrimento do geral, destaca-se pela atenção minuciosa às palavras, sintaxe e estrutura formal. Essa abordagem envolve considerar tanto o conteúdo quanto a forma, proporcionando observações valiosas.
Ao realizar uma leitura atenta e minuciosa, várias perguntas podem orientar a análise. Desde questões sobre o locutor, público-alvo e propósito até a identificação de padrões, ambiguidades e movimento no trecho, a prática do close reading exige um envolvimento ativo. A transcrição cuidadosa é essencial, permitindo uma compreensão mais profunda dos ritmos, viradas e nuances do texto.
A seguir, coloco uma pequena análise do início da obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, sob a base do close reading.
Este é o primeiro parágrafo de Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos, lançado em 1938:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Vidas Secas é o quarto romance do escritor alagoano, feito na sua plena maturidade literária. Dênis de Moraes, em seu excelente livro O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, nos dá este relato:
Lançado em março de 1938, Vidas secas assombrou a crítica. Álvaro Lins foi taxativo: “Um mestre da arte de escrever, acrescento sem nenhum medo de estar errado. E essa categoria Graciliano a conquistou com as vidas secas que povoam o seu mundo romanesco”.
Farei aqui pequenas análises apenas sobre o primeiro
parágrafo da obra, uma leitura atenta acerca de como o autor construiu esse
trecho – e, como consequência, acerca de todo o livro.
Comecemos pelo uso da nominalização. A alternância de substantivos e adjetivos que lembram a aridez, o calor e a fadiga em oposição a nomes que trazem a sensação de leve alívio sensório produz um caleidoscópio sinestésico-semiótico que faz o leitor entrar no mundo seco dos personagens e sentir o ambiente e o sofrimento da família.
- planície avermelhada;
- cansados;
- famintos;
- areia do rio seco;
- galhos pelados;
- catinga rala.
- manchas verdes;
- sombra;
- folhagem dos juazeiros.
Outra característica que nos chama atenção é a utilização
dos artigos. Toda a paisagem e a situação lhes são familiares: a planície
avermelhada, os juazeiros, a areia do rio seco, a viagem, a folhagem dos
juazeiros, os galhos pelados, a catinga rala. Esse cenário de desolação é todo
revelado com artigos definidos, o que mostra que essa lida é diária e a labuta
não tem previsão de fim. O único substantivo antecedido de um artigo indefinido
é exatamente aquilo que tanto os personagens procuram: uma sombra, objetivo
ainda não conquistado, que irá aliviar um pouco seus sofrimentos.
Até os próprios personagens, que até então não foram
nomeados, aparecem com uma única designação: os infelizes, uma conversão do
adjetivo em substantivo por meio de um artigo definido. Isso, ao mesmo tempo,
ilustra a condição ininterrupta da família e o não ineditismo daquele
sofrimento.
Esse martírio inexorável é ainda sustentado pelo tempo
verbal que prevalece, o pretérito imperfeito: alargavam, estavam,
andavam, fazia, procuravam. Esse tempo tem como uma de
suas características indicar uma ação em curso, no passado, ou uma ação
habitual e duradoura no passado, mas que não necessariamente terminou. Assim, o
narrador prepara o leitor para contínua saga da família, um ciclo interminável
como a própria estrutura da obra mostrará: a narrativa termina como começa, com
a família em retirada, no capítulo denominado Fuga. É o destino de vários
Fabianos e Vitórias.
Como ilustração, coloco aqui o trecho final do último parágrafo de Vidas Secas:
E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos.
***
O que significa esse sinha anteposto ao nome Vitória?
A palavra senil e a palavra senhor vêm da mesma origem: do
latim senior. Tanto senil quanto senhor se relacionam com o significado
de “velho”.
Muitas vezes, ouvi certas construções que equiparavam senil
e senilidade com a falta de memória típica de quem vai ficando idoso. Mas essa
associação é apenas metonímica: utiliza-se uma característica da velhice para
dar sentido à palavra senil. A rigor, não é para ser. Senil significa apenas
velho.
Já senhor teve uma evolução que passou de idoso a uma
forma de tratamento (“senhor João”, que depois passou a “seu João”, em que seu
é redução de senhor, nesse caso). Após isso passou a ser sinônimo de valoração,
quando se diz “ele é um senhor médico”. Veja que a anteposição de senhor ao
substantivo médico indica um tom valorativo: ótimo médico. Isso já não acontece
se senhor vier após o substantivo: um médico senhor, que equivale a “médico
idoso”.
Semelhante evolução aconteceu com senhora, que produziu várias formas diferentes na língua portuguesa, especialmente no Brasil, devido à influência de diferentes culturas e dialetos. Dentre elas, estão sinha e sinhá, formas com as quais os escravos designavam a matriarca; e iaiá, um regionalismo do Brasil que se dava às meninas e às moças, muito usado também no tempo da escravidão. Um dos romances da fase romântica de Machado de Assis se chama Iaiá Garcia.
***
E por que Vitória?
Sinha Vitória é uma figura de resistência e sobrevivência.
Embora a vida dela e de sua família seja marcada pela luta constante contra a
seca e a pobreza, ela mantém a esperança e a determinação para continuar.
O nome Vitória, embora possa parecer irônico, frente ao
contexto de dificuldades em que a personagem se encontra, torna-se
profundamente apropriado, se considerarmos a vitória não como um estado final
de sucesso ou prosperidade, mas como a capacidade de persistir e sobreviver.
Ela é a força motriz que mantém a família unida e em
movimento, apesar das circunstâncias desafiadoras. Sua vitória está na sua
resiliência, na sua capacidade de enfrentar a adversidade e continuar lutando.
Sua força, determinação e resistência representam uma forma de sucesso em si
mesmas.
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