segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

PAULO FREIRE E JOSÉ SARAMAGO

 




Paulo Freire dispensa apresentações. A despeito de todo tipo de ataque que sua imagem e ideias vêm sofrendo de uma ala ultraconservadora (o que é bem previsível, já que boa parte das obras do educador defende uma libertação educacional de valores conservadores opressores), é ainda o brasileiro mais citado e aclamado na área de Humanidades no mundo. Suas teorias acerca do fazer pedagógico é uma referencial para os que veem a educação como transformadora e revolucionária.

Igualmente, a importância de José Saramago não carece de muitas explicações. Único ganhador lusófono do Prêmio Nobel de Literatura, Saramago é uma referência do romance contemporâneo. Suas obras trazem conjuntamente o fantástico e a ação humana como protagonistas de mudanças sociais.

Pedagogia do Oprimido é, possivelmente, o livro mais conhecido de Paulo Freire. Nele o autor combate a educação bancária, nome dado à prática pedagógica em que há uma relação de poder vertical, na qual o professor é o detentor do saber e tem como função depositar o conhecimento na cabeça do aluno, "recipientes a serem 'enchidos' pelo educador", uma ação claramente antidialógica. Essa prática concebe "Homens espectadores e não recriadores do mundo", eternizando os opressores e aumentando os oprimidos. Se não há criação e produção de saber, não há conhecimento construído, apenas repetido. E, como vivemos em um mundo de exploração, em que os que mais têm poder exploram os que menos o têm, replica-se esse modelo por meio da educação por não haver sensibilidade crítica dos educandos, pois estes não são educados para a análise, para o olhar crítico. Tornam-se meros reprodutores de valores dominantes.

Ensaio sobre a Cegueira é a obra mais conhecida de José Saramago, especialmente devido à adaptação para os cinemas feita pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles. É o nono romance do português, publicado em 1995. A obra é uma mistura de um realismo fantástico com uma crua análise sociológica das ações humanas. Nos dizeres do autor: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso". O romance narra a história surreal de uma pandemia de cegueira, uma cegueira branca, cujas causas são desconhecidas. Em meio a personagens sem nome, apenas uma pessoa parece imune: a mulher do médico.

Em uma passagem da obra, vários cegos estão confinados em um hospital. A relação de poder começa a se estabelecer, e um grupo de uma das alas se impõe por possuir uma pistola e passa a dominar toda a comida que lhes era distribuída. Para que os das outras alas possam comer, devem doar pertences e, em certo momento, favores sexuais. Mesmo sem serventia real, os pertences como tributos eram uma mostra de dominação. Mas um personagem chama a atenção, um cego de nascença, que servia de escriturário para a gangue dos malfeitores: "Havia portanto um cego normal entre os cegos delinquentes, um cego como todos aqueles a quem dantes se dava o nome de cegos, evidentemente tinha sido apanhado na rede com os demais, não era a altura de pôr-se o caçador a averiguar".

Em todos esses personagens malfeitores, vemos soarem as ideias de Paulo Freire. As ações são reflexos de uma repetição opressora.

Não há liberdade, não há possibilidade de construção de conhecimento que possa deixar todos livres. O que há é uma contínua relação de poder e opressão. Até mesmo o cego de nascença se realiza como opressor, apesar de toda uma vida de oprimido. É a realização prática da máxima freiriana: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor".

Em uma parte seguinte da obra, os cegos conseguem sair do hospital por terem sido abandonados. Na rua, percebem que o hospital era apenas um microcosmo da sociedade. Nada há de diferente. A luta de um contra todos permanece. O oprimido, nesse caso por sobrevivência, torna-se opressor. Um hobbesianismo nato, o caos social irrefreado.

O grupo do médico passa por todos os testes sociais, e a união - direcionada pela mulher do médico - salva-os, até que, no final, suas visões retornam. Mas as causas da cegueira continuam desconhecidas.

"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem. 

A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava."



Jason Lima
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