Na crônica "Harry Potter faz mal aos adultos?", de Umberto Eco, lançado aqui no Brasil no livro Pape Satàn aleppe: crônicas de uma sociedade líquida, pela editora Record, o autor defende a série de J. K. Rowling contra críticas de deseducação e diabolismo para crianças. Eco mostra que as histórias de magia são arquetípicas, conectando-se a obras clássicas como Branca de Neve, Oliver Twist, Peter Pan e O patinho feio e que as crianças distinguem fantasia da realidade. Para o autor, a verdadeira influência está nos valores transmitidos pelos personagens, como amizade, coragem e justiça, elementos que as crianças incorporam de maneira consciente.
A seguir coloco a crônica completa:
Escrevi uma Bustina* sobre Harry Potter quase dois anos atrás, quando as três primeiras histórias já haviam sido publicadas e o mundo anglo-saxônico começava a discutir se não seria deseducativo contar aos jovens estas histórias de magia, pois poderiam induzi-los a levar certos delírios ocultistas a sério. Com o filme, o fenômeno Harry Potter está se transformando numa coisa verdadeiramente global e vi outro dia um episódio do programa Porta a porta onde apareciam o mago Otelma, felicíssimo com a publicidade a favor de senhores como ele (e vestido, ademais, de um modo tão “magoso” que nem Ed Wood teria coragem de mostrá-lo assim em seu filme de terror) e, do outro lado, um ilustre exorcista, o padre Amorth (nomen omen), para quem as histórias de Harry Potter veiculam ideias diabólicas. Para explicar melhor, enquanto a maioria das outras pessoas sensatas presentes no programa pensava que magia branca e magia negra são invencionices (se é que podemos levar a sério quem acredita nelas), o padre exorcista levava muito a sério toda e qualquer forma de magia (branca, negra e até de bolinhas) como obra do Maligno.
Se o clima é este, creio que devo entrar em campo a favor de Harry Potter. As histórias são, é claro, histórias de magos e feiticeiros e é óbvio que teriam sucesso, pois as crianças sempre gostaram de fadas, anões, dragões e bruxos e ninguém nunca pensou que Branca de Neve fosse criação de um complô de Satanás, e se tiveram e ainda têm sucesso é porque sua autora (não sei se por cultíssimo cálculo ou prodigioso instinto) soube colocar em cena situações narrativas verdadeiramente arquetípicas.
Harry Potter é filho de dois bruxos boníssimos mortos pelas forças do mal, embora não soubesse disso no início e vivesse como um órfão maltratado por tios mesquinhos e tiranos. Depois, sua verdadeira natureza e sua vocação foi revelada e ele partiu para estudar num colégio para jovens bruxos de ambos os sexos, onde vive aventuras mirabolantes. Eis o primeiro esquema clássico: pegue uma jovem e meiga criatura, faça com que sofra todo tipo de maldade, revele por fim que era criatura de uma raça fadada a destinos luminosos e eis que se obtém não apenas o Patinho Feio e Cinderela, mas Oliver Twist e o Remy de Sem família, de Malot. Além disso, a escola de Hogwarts, onde Harry aprende a fazer poções mágicas, parece com muitos colégios ingleses, onde se joga um daqueles esportes anglo-saxões que fascinam tanto os leitores de além-Mancha, porque conseguem entender as regras, quanto os continentais, que jamais conseguirão entendê-las. Outra situação arquetípica evocada é a dos Meninos da rua Paulo. Também tem alguma coisa do Jornalzinho de Gian Burrasca, com os pequenos estudantes reunidos numa conspiração contra professores excêntricos (alguns perversos). Acrescente-se que as crianças jogam cavalgando vassouras voadoras e eis que temos também Mary Poppins e Peter Pan. Por fim, Hogwarts parece um daqueles castelos misteriosos que aparecem nos livros da “Biblioteca dei miei ragazzi” de Salani Editore (o mesmo de Harry Potter), onde um grupo bem entrosado de meninos de calças curtas e meninas de longos cabelos dourados desmascara as manobras de um intendente desonesto, de um tio corrupto, de um bando de trapaceiros e descobre no final um tesouro, um documento perdido, uma cripta secreta.
Se Harry Potter fala de encantamentos de causar arrepios e de animais assustadores (afinal, a história é voltada para crianças que cresceram com os monstros de Carlo Rambaldi e com os desenhos animados japoneses), as crianças lutam por boas causas, como fazem os escoteiros, e dão ouvidos a educadores virtuosos, tanto que chegam a lembrar (feitos todos os descontos históricos) o bom-mocismo de Coração, de De Amicis.
Acreditamos realmente que, lendo histórias de magia, as crianças vão acreditar em bruxas quando crescerem? É o que alegam, como se fosse um só pensamento, embora com sentimentos opostos, o mago Otelma e o padre Amorth. Todos experimentamos um temor salutar diante de ogros e lobos maus, mas ao crescer aprendemos a não ter medo de maçãs envenenadas, e sim do buraco na camada de ozônio, e o fato de acreditarmos, quando éramos pequenos, que os bebês eram trazidos pela cegonha não nos impediu de adotar, quando adultos, um sistema mais adequado (e mais agradável) de fazê-los.
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Umberto Eco |
O verdadeiro problema não são as crianças, que nascem acreditando no Gato e na Raposa, como Pinóquio, mas depois aprendem a lidar com espertalhões bem diferentes e menos fantásticos; o problema preocupante são os adultos, talvez os que não leram histórias de magia quando pequenos, que, encorajados até por programas televisivos, consultam leitores de borra de café, ilusionistas de tarô, oficiantes de missas negras, curandeiros, manipuladores de mesas, prestidigitadores do ectoplasma, reveladores do mistério de Tutancâmon. E depois, de tanto acreditar em magos, voltam a acreditar até no Gato e na Raposa.
2001
* Bustina era a forma como eram conhecidas as suas crônicas, uma redução do nome da sua coluna La Bustina di Minerva, na revista L’Espresso.
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