Em 8 de dezembro de 1980, morria John Lennon, aos 40 anos. E isso não passou despercebido pelo autor de Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez. Segundo o escritor, durante 48 horas, o mundo foi tomado por uma comoção que uniu três gerações em uma catástrofe comum.
Veja a seguir uma crônica do autor colombiano sobre o acontecimento:
SIM: A NOSTALGIA CONTINUA A MESMA DE ANTES
Gabriel García Márquez
Foi uma vitória mundial da poesia. Num século em que os vencedores são sempre os que batem mais forte, os que conseguem mais votos, os que fazem mais gols, os homens mais ricos e as mulheres mais belas, é alentadora a comoção provocada no mundo inteiro pela morte de um homem que dedicou a vida a cantar o amor. É a apoteose dos que nunca ganham.
Durante 48 horas não se falou de outra coisa. Três gerações — a nossa, a de nossos filhos e a de nossos netos mais velhos — tínhamos pela primeira vez a impressão de viver uma catástrofe comum, e pelas mesmas razões. Um repórter da televisão perguntou na rua a uma senhora de oitenta anos qual era a canção de John Lennon que lhe agradava mais, e ela respondeu como se tivesse 15:
— “Happiness is a warm gun.”
Um garoto que estava vendo o programa disse:
— Pois eu gosto de todas.
Meu filho mais novo perguntou a uma garota da mesma idade por que mataram John Lennon, e ela respondeu, como se tivesse oitenta anos:
— Porque o mundo está acabando.
É assim: a única nostalgia comum que a gente tem com os filhos são as canções dos Beatles. Cada qual com seus próprios motivos, e com uma dor diferente, como ocorre sempre com a poesia. Não esquecerei nunca aquele dia memorável de 1963, no México, quando ouvi pela primeira vez, de maneira consciente, uma canção dos Beatles. A partir de então descobri que o universo inteiro estava contaminado por eles. Em nossa casa de San Ángel, com espaço apenas para nos sentarmos, havia somente dois discos: uma seleção de prelúdios de Debussy e o primeiro disco dos Beatles. Por toda a cidade, a toda hora, escutava-se um grito de multidão: “Help, I need somebody.” Alguém voltou a sugerir por esta época o velho mote segundo o qual os melhores músicos são os da segunda letra do catálogo: Bach, Beethoven, Brahms e Bartok. Alguém voltou a dizer a mesma tolice de sempre: que se incluísse Bozart. Álvaro Mutis, que como todo grande erudito da música tem uma fraqueza irremediável pelos tijolos sinfônicos, insistia em incluir Bruckner. Houve também quem tentasse reeditar a batalha em defesa de Berlioz, da qual eu discordava, porque não podia superar a superstição de que é um oiseau de malheur, isto é, um pássaro de mau agouro. Em compensação, empenhei-me desde então em incluir os Beatles. Emilio García Riera, que concordava comigo e é um crítico e historiador de cinema com uma lucidez um pouco sobrenatural, sobretudo depois do segundo trago, disse-me num destes dias:
— Ouço os Beatles com um certo medo, porque sinto que vou me recordar deles pelo resto de minha vida.
É o único caso que conheço de alguém com bastante clarividência para se dar conta de que estava testemunhando o nascimento de suas nostalgias. Entrava-se no escritório de Carlos Fuentes e ali estava ele escrevendo à máquina com um único dedo de uma única mão, como fazia sempre, em meio a uma densa nuvem de fumaça e isolado dos horrores do universo com a música dos Beatles a todo volume.
Como sempre acontece, pensávamos então que estávamos muito longe de ser felizes, e agora pensamos o contrário. É a armadilha da nostalgia, que tira de seu lugar os momentos amargos e os pinta com outra cor, e torna a colocá-los onde já não doem. Como nos retratos antigos, que parecem iluminados pelo resplendor ilusório da felicidade, nos vemos com assombro como éramos jovens quando éramos jovens, e não apenas nós que estávamos ali, mas também a casa e as árvores do fundo, e até as cadeiras em que nos sentávamos. Che Guevara, conversando com seus homens ao redor do fogo nas noites vazias da guerra, disse uma vez que a nostalgia começa pela comida. É certo — mas só quando se tem fome. Em compensação, sempre começa pela música. Na realidade, nosso passado pessoal se afasta de nós desde o momento em que nascemos, mas só o sentimos passar quando um disco acaba.
Esta tarde, pensando tudo isto diante de uma janela triste onde cai a neve, com mais de cinquenta anos nas costas e ainda sem saber bem quem sou, nem que porra faço aqui, tenho a impressão de que o mundo foi igual desde meu nascimento até que os Beatles começaram a cantar. Tudo mudou então. Os homens deixaram crescer o cabelo e a barba, as mulheres aprenderam a se despir com naturalidade, mudou a maneira de vestir e de amar, e se iniciou a liberação do sexo e de outras drogas para sonhar. Foram os anos estridentes da guerra do Vietnã e da rebelião universitária. Mas, sobretudo, foi a dura aprendizagem de uma relação diferente entre pais e filhos, o início de um novo diálogo entre eles que parecera impossível durante séculos.
O símbolo de tudo isto — à frente dos Beatles — era John Lennon. Sua morte absurda nos deixa um mundo diferente povoado de imagens harmoniosas. Em “Lucy in the sky”, uma de suas canções mais bonitas, fica um cavalo de papel de jornal com uma gravata de espelhos. Em “Eleanor Rigby” — com um baixo obstinado de celos barrocos — fica uma jovem desolada que recolhe o arroz, no átrio de uma igreja onde acaba de se celebrar um casamento. “De onde vêm os solitários?”, pergunta-se, sem resposta. Fica também o padre MacKensey escrevendo um sermão que ninguém ouvirá, lavando as mãos sobre os túmulos, e uma jovem que tira o rosto antes de entrar em casa e o deixa num frasco perto da porta para colocá-lo de novo quando tornar a sair. Estas criaturas sugerem que John Lennon era um surrealista, que é algo que se diz com demasiada facilidade de tudo o que parece extraordinário, como costumam dizer de Kafka os que não souberam lê-lo. Para outros, é o visionário de um mundo melhor. Alguém que nos fez compreender que velhos não somos os que temos muitos anos, mas os que não subiram a tempo no trem de seus filhos.
16/12/1980
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