domingo, 17 de março de 2024

OSÓRIO ALVES DE CASTRO E O COMPROMISSO SOCIAL

Osório Alves de Castro é um lírico da arte de narrar as agruras e a alma do sertão. Seus escritos fluem naturalmente, mergulhando na essência sertaneja e nas saudades da alma do nordestino exilado. Sua obra traz as sombras do passado, transformando o enredo em um espaço-tempo de beleza e tragédia humanas.

Nascido em Santa Maria da Vitória, Bahia, em 1898, filho de um cartorário e de uma dona de casa, Osório viveu suas raízes nordestinas até migrar para o Sudeste do país em 1922, onde exerceu a profissão de alfaiate. Por trás do balcão de sua alfaiataria, ele se tornou conhecido como "o homem que costura as palavras", um artesão tanto na confecção de roupas quanto na construção de mundos literários.

Osório Alves de Castro

Sua vida literária foi marcada por uma singularidade profunda, retratando o cenário "barranqueiro" do médio Rio São Francisco com uma autenticidade singular. Em 1962, seu romance Porto Calendário recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura, sendo sua única obra publicada em vida. Esse reconhecimento colocou Osório Alves de Castro em destaque, proporcionando-lhe aparições na televisão, palestras e até uma viagem a Moscou.

Sua escrita era uma crítica contundente às relações de opressão nas sociedades arcaicas do Nordeste brasileiro, especialmente evidenciada a partir da década de 1930. Em suas páginas, as desigualdades sociais são expostas como resultado da concentração de poder político e econômico nas mãos de poucos, revelando as injustiças que assolavam a região.

Porto Calendário - único livro de Osório publicado em vida


A amizade epistolar com Guimarães Rosa evidencia o impacto de seu trabalho literário. Rosa expressou profunda admiração por Castro.

Osório Alves de Castro faleceu em 1978, aos 80 anos, em Itapecerica da Serra, São Paulo. Em um país marcado por desigualdades e lutas sociais, ele permanece como uma voz poderosa, inspirando-nos a lutar por um mundo mais justo e igualitário e que deve ser resgatado com a máxima urgência.

Jason Lima


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sexta-feira, 15 de março de 2024

O "MILAGRE ECONÔMICO" E A FARSA DO REI DESPIDO

Durante os anos da ditadura militar, o poder do ministro da Fazenda era quase absoluto, um instrumento na engrenagem do regime. Delfim Netto, que ocupou o cargo nos governos de Costa e Silva e Médici, exerceu influência decisiva em um período marcado por medidas econômicas draconianas, decretos-lei autoritários e uma imprensa oficial que dizia o que era para ser publicado.

Delfim Netto envolveu-se, ao logos dos anos seguintes, em vários escândalos de corrupção e em ações distantes de serem ilibadas. Um dos episódios mais lembrados envolvendo o ex-ministro foi o Escândalo Coroa-Brastel, que veio à tona em 1985. Delfim Netto, juntamente com o empresário Assis Paim Cunha e o ministro Ernane Galvêas, foi acusado de desviar recursos governamentais da Caixa Econômica Federal para benefício pessoal. As ramificações desse escândalo lançaram uma sombra duradoura sobre a carreira de Delfim, evidenciando práticas questionáveis em seu período como ministro.

Em outro momento, no chamado caso Panama Papers, divulgado em 2016 pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), trouxe à luz contas em empresas offshore no exterior atribuídas a Delfim Netto, criadas pela firma panamenha Mossack Fonseca. Essa revelação lançou mais dúvidas sobre a transparência financeira do ex-ministro, ampliando o rol de questionamentos éticos.

Delfim Netto

Já em 2016, a delação premiada da Operação Lava Jato trouxe Delfim Netto de volta aos holofotes, desta vez envolvido em suspeitas de recebimento de propinas nas obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Quatro delatores corroboraram alegações de corrupção, indicando um padrão de conluio que envolveu grandes empreiteiras. A busca e apreensão realizada em março de 2018, no âmbito da Lava Jato, acentuou as suspeitas contra Delfim Netto, que era alvo de investigação por supostamente receber quinze milhões de reais em propinas relacionadas à construção de Belo Monte.

Voltando ao cenário de poder concentrado durante a Ditadura, a resistência ao governo militar encontrava poucos canais para se manifestar. A fortaleza do regime, paradoxalmente, começou a ruir de dentro para fora. Um episódio emblemático desse jogo de interesses foi a criação, em 1966, do Banco Central, um órgão autônomo destinado a garantir a estabilidade monetária e fortalecer o sistema financeiro. Contudo, a independência proposta rapidamente se viu ameaçada pelas tramas políticas de Delfim Netto.

Na transição entre os governos de Castelo Branco e Costa e Silva, Delfim, futuro signatário do AI-5, conspirou contra a indicação do presidente do Banco Central, tramando suspeitas de ações ilícitas pela diretoria do BC. A intriga culminou numa CPI que afastou os diretores do órgão, consolidando o controle sobre uma peça-chave da economia.

Durante o chamado "Milagre Econômico" entre 1969 e 1973, um período de crescimento econômico exponencial sob a ditadura militar, dados oficiais propagavam uma baixa inflação, mas a verdade oculta começou a se desvelar. O ministro da Economia do governo Geisel, Mário Henrique Simonsen, denunciou a farsa dos índices inflacionários durante o governo Médici.

A prática de congelar preços, adotada por Delfim, maquiava a realidade econômica. Na teoria, os índices indicavam estabilidade, mas na prática os mercados operavam com valores até três vezes superiores. O "Rei", representando a ilusão do Milagre Econômico, estava nu. A analogia com o conto A Nova Roupa do Rei, de Hans Christian Andersen, publicado em 1837, é visual, pois, como no conto, na ditadura ninguém tinha ousado antes denunciar a farsa, temendo a repressão. 

Na história dinamarquesa, havia um imperador extremamente vaidoso e preocupado com sua aparência. Dois vigaristas, sabendo disso, fingiram ser tecelões habilidosos e prometeram ao monarca uma roupa magnífica. Eles afirmaram que essa roupa seria tão especial que apenas pessoas inteligentes e dignas poderiam vê-la. Além disso, ela seria invisível para tolos ou filhos bastardos.

O imperador, curioso e ansioso para exibir sua suposta superioridade, contratou os vigaristas. Eles fingiram tecer o tecido, mas na verdade, não havia nada lá. O imperador, com medo de parecer ignorante, enviou seus ministros e cortesãos para ver a roupa. Todos, com receio de admitir que não viam nada, elogiaram a suposta beleza do tecido.

Finalmente, o imperador decidiu usar a roupa nova em um grande desfile público. Quando ele saiu às ruas, todos elogiaram sua vestimenta, pois ninguém queria ser considerado tolo. Até que uma criança inocente exclamou: “O rei está nu!” A verdade se espalhou, e o imperador ficou envergonhado.

O rei está nu

A farsa do rei despido mostra a fragilidade do discurso oficial e a importância da denúncia, um pouco mais simples  - embora com ressalvas - numa democracia. No conto, o rei, orgulhoso, foi enganado por charlatães. No Brasil, o povo, desinformado, foi enganado por um governo de ditatorialmente mentiroso e manipulador.

Jason Lima


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domingo, 10 de março de 2024

NARRATIVA ETIMOLÓGICA - RALF, O CONSELHEIRO

Em uma floresta ancestral na Grã-Bretanha, onde árvores centenárias uniam suas raízes e a neve cobria o solo por meses, uma alcateia governava dominantemente. Ralf, um lobo sábio conhecido como o Conselheiro, destacava-se entre eles. Seu nome se originava de Raedwulf e simbolizava suas habilidades - raed, "conselho", e wulf, "lobo". Ele era a estrela moral do grupo, consultado em tempos de incerteza.

A alcateia prosperou sob a sua liderança. Suas decisões ponderadas e conselhos garantiam a supremacia na floresta. No entanto, o tempo é inevitável, e Ralf, agora envelhecido, buscava um sucessor digno. O Conselheiro sentia a urgência de encontrar alguém que pudesse manter a tradição viva. No entanto, as novas gerações mostravam relutância em aceitar os conselhos dos mais velhos. A sabedoria acumulada estava prestes a ser perdida.

As gerações mais jovens começavam a se desvincular das tradições antigas. O respeito pelas experiências passadas estava se perdendo, dando lugar a uma confiança excessiva na juventude e na inovação. A alcateia, antes unida sob a orientação de Ralf, começou a mostrar sinais de desunião.

Com a morte de Ralf, a alcateia perdeu mais um líder e a sabedoria. As gerações mais jovens, agora sem orientação, enfrentaram desafios inesperados. Os rivais, que valorizavam os conselhos dos mais antigos, avançaram com estratégias calculadas. A alcateia outrora dominante viu seu reino ruir. Os lobos mais jovens, embora ágeis e fortes, não tinham o discernimento e a experiência necessários para liderar. A sabedoria perdida revelou-se fundamental, e os lobos rivais conquistaram a supremacia na floresta.


A alcateia aprendeu da maneira mais difícil que, ao ignorar os conselhos dos mais antigos, a base de conhecimento que sustenta uma sociedade é erodida.

A história de Ralf, o Conselheiro, na ancestral floresta britânica, traz uma reflexão sobre o equilíbrio delicado entre inovação e tradição. Há sempre a necessidade de inovação e renovação, porém existe também a importância do respeito pela experiência e sabedoria acumulada ao longo das gerações.

No mundo dinâmico em que vivemos, as inovações são motores essenciais para o progresso e o desenvolvimento. Novas ideias, tecnologias e abordagens muitas vezes impulsionam a sociedade para frente, desencadeando avanços significativos em diversas áreas. Contudo, a história de Ralf oferece uma advertência de que o entusiasmo pela novidade não deve levar à desvalorização da experiência e das lições do passado.

As gerações mais jovens, assim como os lobos na floresta, podem se beneficiar enormemente das inovações e perspectivas que trazem consigo. No entanto, é mister reconhecer que a história, com todas as suas cicatrizes e triunfos, é uma professora incomparável. As experiências acumuladas ao longo do tempo proporcionam uma visão importante, capaz de guiar a tomada de decisões de maneira informada e sábia. A história não apenas nos ensina sobre as conquistas, mas também alerta sobre os erros do passado, oferecendo um manual valioso para evitar repetições prejudiciais.

A história da palavra alcateia revela uma interessante conexão entre o sentido original árabe e a dinâmica da alcateia de lobos na narrativa de Ralf, o Conselheiro. Originária do termo árabe al-qatyya, cujo significado está associado a um "grupo de animais" ou "rebanho", a palavra traz consigo a ideia de dividir ou separar parte do todo para se formar um grupo. Ralf, como o líder sábio e experiente, desempenhava o papel de unificador, mantendo a coesão da alcateia. Ele era a figura que, de certa forma, evitava a divisão entre os lobos, proporcionando orientação e sabedoria.

Contudo, à medida que as gerações avançavam, uma divisão começou a surgir entre os mais velhos, que mantinham firme suas tradições e experiências, e os mais jovens, que se afastavam das práticas estabelecidas. Essa divisão, semelhante à raiz etimológica árabe da palavra, representava a separação de partes dentro do todo, indicando um afastamento do princípio de unidade e colaboração. Formou-se, assim, uma alcateia de uma alcateia e, com isso, houve uma divisão das forças do grupo.

Jason Lima


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O DOUTOR BENIGNUS E O INÍCIO DA FICÇÃO CIENTÍFICA NO BRASIL

A ficção científica frequentemente é vista como uma fronteira distante e pouco explorada na literatura brasileira. No entanto, há um rico universo de ideias futurísticas e especulativas que influenciaram a visão dos escritores do final do século XIX e início do século XX. Nesse contexto, surge a obra O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar (1826-1882), que busca o desconhecido e reflete as transformações sociais, culturais e científicas da época.

Augusto Emílio Zaluar

A obra de Zaluar surge no cenário literário brasileiro durante a geração de 1870, uma época de efervescência intelectual e mudanças marcantes no país. O autor explora as influências europeias, particularmente as ideias de Charles Darwin sobre a evolução, para construir uma narrativa para além das fronteiras do conhecido. A partir daí, a literatura de ficção científica começa a ganhar terreno, desafiando as convenções e proporcionando aos leitores uma visão especulativa do Brasil e do mundo.

A obra O Doutor Benignus andou entre o reconhecimento e o apagamento. A narrativa, muitas vezes esquecida na história da literatura brasileira, enfrentou desafios estéticos que a colocaram à margem do cânone literário. Contudo, o texto ainda carrega passagens românticas que capturam a essência da fauna, flora e geografia brasileiras, mantendo um valor estético que merece reconhecimento. A crítica contemporânea revela uma narrativa científica e uma obra que produz uma interpretação singular do darwinismo e da origem do homem no Brasil do século XIX.

A conexão entre a teoria da evolução de Darwin e a concepção do homem em O Doutor Benignus oferece um olhar sobre a mentalidade da época. Dr. Benignus, o protagonista, é um cientista antiquado e benevolente, imerso na investigação da natureza em busca de respostas sobre a vida humana. A crença do personagem na evolução, aperfeiçoamento e progresso reflete os temas centrais do século XIX, revelando como a obra dialoga com as transformações sociais e culturais da época. O papel da seleção natural, tanto na natureza quanto na sociedade, conecta o enredo com os princípios fundamentais do darwinismo.


Há no texto de Augusto Emílio Zaluar representações complexas do homem e da moralidade. A obra associa ideias darwinistas à moral, relacionando a ciência do homem e da natureza com a ciência de Deus. A descrição do Brasil como um território rico e envolvente contrasta com as críticas de Machado de Assis, seu contemporâneo, que questionava a ênfase excessiva na descrição das características naturais e humanas na literatura brasileira. Dr. Benignus é um naturalista dedicado ao estudo da astronomia e biologia, personificando o contexto do movimento naturalista da época. 

A expedição liderada por Dr. Benignus torna-se uma metáfora da exploração científica e cultural. Ao percorrer mais de três mil quilômetros, a jornada internacional composta por membros de diferentes nacionalidades mostra um empreendimento diversificado em busca de conhecimento científico. A expedição é, ao mesmo tempo, uma exploração física da natureza brasileira e uma incursão nas origens do homem, no resgate de personagens desaparecidos e na interação com povos indígenas. O texto destaca a diversidade de conhecimentos e habilidades dos membros da expedição, proporcionando uma visão abrangente da busca por compreensão e exploração da natureza brasileira.

Em um país que muitas vezes subestima o potencial da ficção científica, O Doutor Benignus explora o desconhecido, repensa as relações entre ciência e literatura e reconhece a importância da ficção científica como uma expressão legítima da busca humana por entendimento da realidade. O Doutor Benignus entrou, a despeito do seu esquecimento inicial, para a história da literatura brasileira como a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil.


Jason Lima


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sábado, 9 de março de 2024

A MACA


Era um desses dias no hospital em que um quadro de vida e morte se desenhava com a crueldade de um esboço malfeito e rotineiro. Na sala de espera, os segundos pareciam se desdobrar lentamente enquanto famílias aguardavam, ansiosas, o horário de visitas. Uns olhavam os relógios, outros fixavam o olhar no vazio, todos compartilhando a mesma aquarela invisível da preocupação.

No meio desse cenário cauteloso de espera, uma família carregava o peso do luto. As notícias recentes haviam pintado seus semblantes com tonalidades opacas. O patriarca partira e deixara um retrato vazio, um silêncio na história familiar. Lágrimas, antes contidas, agora escapavam fazendo avenidas nas maquiagens e pavimentando tez tão já maltratada do tempo. Inundavam-se as lembranças e encharcava-se a esperança.

A morte era recente, mas o destino era inflexível. A família se levanta, tentando seguir adiante, mas uma única pessoa permanece. Na solidão, ela enfrenta o corredor do hospital, onde a realidade é cruelmente exposta. Uma maca avança, carregando um corpo que, em tempos passados, era o pai, o patriarca, o avô. Hoje, é apenas um corpo inerte, oculto sob um lençol branco. A dor é destruidora. O corpo que ali repousa já não é mais o guardião de histórias, o conselheiro, o sorriso nas fotografias antigas. É apenas matéria sem vida, um vestígio do que antes foi. A tristeza se materializa na visão do inimaginável: a vida se despe daquele que a habitava.

A maca segue seu caminho, levando consigo um corpo e a narrativa de uma família. As lágrimas solitárias da filha-testemunha evidenciam a tristeza que se manifesta no corredor. 

Momentos depois, a mesma maca retorna, agora vazia de tudo, exceto por um lençol solitário, desprovido do volume que há pouco encobrira.

O hospital, palco dessa tragédia tão costumeira para quem faz da morte e da vida um ofício, segue esboçando novos desenhos a cada dia. Os corredores testemunham a efemeridade da existência, em que lágrimas e sorrisos coexistem como os personagens de um quadro intangível, de um livro que há de ser escrito hora a hora. E, assim, mais uma família se despede de uma história, de uma lembrança, de um lençol em uma maca, nesse episódio trágico-familiar.

Jason Lima


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sexta-feira, 8 de março de 2024

LAWRENCE FERLINGHETTI: O PADRINHO DA GERAÇÃO BEAT

Lawrence Ferlinghetti (1919-2021), poeta, pintor e ativista social, foi uma figura central no movimento beat nos Estados Unidos. Em 1953, ele cofundou (com Peter D. Martin) a City Lights Booksellers & Publishers em São Francisco, que rapidamente se tornou um ponto de encontro essencial para escritores, artistas e intelectuais. Mais do que uma livraria, a City Lights tornou-se um centro da contracultura, abraçando a literatura independente e desafiando as convenções literárias da época. Ferlinghetti viu a livraria como um refúgio para vozes marginalizadas, criando um ambiente em que a liberdade criativa florescia.

A City Lights nasceu de um desejo de Lawrence Ferlinghetti de criar um espaço para promover a literatura independente, especialmente a poesia. Inicialmente estabelecida como uma livraria, rapidamente se transformou em uma editora independente, com o objetivo claro de dar voz aos escritores que desafiavam os padrões tradicionais. Lawrence, ao fundar a City Lights, estava lançando as bases da geração beat

Lawrence Ferlinghetti e a City Lights

Um dos momentos mais marcantes da carreira de Ferlinghetti foi sua decisão corajosa de publicar Howl (O uivo) de Allen Ginsberg. Esse poema provocativo, que abordava temas como sexualidade e liberdade de expressão, levou Ferlinghetti a um julgamento histórico da Primeira Emenda. Sua absolvição solidificou a importância da liberdade criativa e estabeleceu a City Lights como um bastião da expressão artística sem restrições.

Ferlinghetti era um poeta prolífico, conhecido por sua coleção de poemas A Coney Island of the Mind (Um Parque de Diversões da Cabeça), publicada em 1958. Sua poesia, embora influenciada pelo movimento Beat, tinha uma identidade única. Explorando temas como vida urbana, política e espiritualidade, ele optava por uma linguagem acessível e uma abordagem direta. Além das palavras, Ferlinghetti expressava-se visualmente por meio de sua habilidade como pintor, criando uma fusão de elementos visuais e literários.

Lawrence acreditava na democratização da cultura e na acessibilidade da arte a todos. Ele desafiou a ideia de que a poesia deveria ser elitista, defendendo a importância de tornar a literatura disponível ao público em geral. Seu legado, que se estende além das páginas de seus escritos, é evidente na influência duradoura que teve na cena literária. Além de seu papel como editor e poeta, sua dedicação à justiça social e à liberdade artística inspirou gerações de artistas e escritores. Sua contribuição para a liberdade de expressão, seu papel como catalisador da contracultura e seu compromisso com a acessibilidade da arte são testemunhos de sua ideia visionária. 

Jason Lima


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O LIVRO E SUA RELAÇÃO ETIMOLÓGICA COM AS ÁRVORES

A palavra livro é originada do termo latino liber, que inicialmente significava a "parte interior da casca de árvore". Essa palavra passou por adaptações semânticas ao longo dos séculos.

No latim, liber não tardou em ampliar seu significado, vindo a denotar, além da casca interna das árvores, "livro, papel e pergaminho". Um processo metonímico em que a matéria passou a designar o objeto, assim como ocorre quando se chamavam prata ou cobre as moedas utilizadas comercialmente.

A origem de liber é o indo-europeu *lewb, que significava "tirar uma camada" ou "descascar". Essa raiz linguística relaciona o ato de descascar e a prática inicial de usar a casca interna das árvores como suporte para a escrita. Antes da fabricação formal do papel, o liber era empregado como suporte de escrita.


A denominação "folha" para cada papel do livro revela um elo linguístico interessante a partir de uma metáfora. E isso se torna ainda mais interessante quando observamos que em inglês, a palavra leaf (folha) deriva da mesma base etimológica que "livro" (liber).

O termo inglês book (livro, em português) tem suas origens no inglês antigo boc, que significa "livro, escrita, documento escrito". Essa palavra é geralmente associada ao proto-germânico *bōk(ō)-, originado de *bokiz, que significa "faia" (nome comum dado às árvores do gênero Fagus e Nothofagus).

A ideia é a de tábuas de faia nas quais runas (cada uma das 24 letras do mais antigo alfabeto germânico) eram inscritas, indicando uma prática ancestral de escrita em material derivado de árvores.

Assim, as palavras livro (em português), livre (em francês), libro (em espanhol e em italiano), book (em inglês) e Buch (em alemão) têm suas origens em árvores em que eram feitas inscrições.


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segunda-feira, 4 de março de 2024

A MAIOR OBRA JÁ PUBLICADA

Em 2023, o professor espanhol de filosofia Jesús Millán Muñoz (1957) - cujo pseudônimo literário é J. M. M. Caminero - apresentou ao mundo uma obra monumental intitulada Cuadernos de la Mancha (romance filosófico e pictórico, segundo o autor) ou Cuadernos o Soliloquios. Esse projeto gigantesco em espanhol abrange uma rica variedade de gêneros, incluindo literatura, ensaio, filosofia, pintura, fotografia, videoarte e documentação. 

Jesús Millán Muñoz

A obra é composta por 50 volumes, totalizando cerca de 50.000 páginas e impressionantes 22 milhões de palavras. Esta dimensão destaca a grandiosidade dessa criação. Cuadernos se destaca como a mais imponente em termos de quantidade de palavras escritas por um único autor. Além dos escritos, o autor incorpora artigos jornalísticos, tuítes (aforismos), quadrinhos e fragmentos do Facebook.

Dentro dessa obra, destaca-se a Epopeia Filosófica, uma composição de cerca de 65.000 versos, divididos em 32 partes. Há ainda aproximadamente 350 conversas filosóficas gravadas em áudio ou vídeo, totalizando cerca de cem horas de gravação. A obra contém também uma coleção impressionante de oitenta mil desenhos, pinturas e páginas de livros de artista, muitas das quais estão em coleções públicas e privadas, como La Biblia del Monasterio de Silos e Códice del Nuevo Testamento de Victorina, que figuram entre os maiores do mundo em termos de tamanho. Uma outra parte abrange algumas centenas de fotos documentais e artísticas, bem como gravações de videoarte.

Para compreender a complexidade dessa obra, é fundamental, portanto, abordá-la como hipertextual, pluriduscursiva e multiautoral, uma tessitura que conecta palavras, imagens, ideias e experiências, proporcionando aos leitores um comando sobre a viagem textual a que se destina. 

Abaixo coloco, em tradução livre feita por mim, um artigo - entre centenas produzidos pelo professor (e também chargista) Jesús Millán Muñoz - que fala sobre a produção intelectual e a sua catalogação. Um pouco do pensamento do homem por trás dos Cuadernos de la Mancha.


Produzir ou Catalogar

Jesús Millán Muñoz

Todo autor, seja qual for a disciplina, enfrenta o dilema que, resumidamente, é: ou você produz ou cataloga. Dirão que o ideal é fazer ambas as coisas.

Mas a realidade é mais complexa, seja em matemática, filosofia, teologia, fotografia, design, literatura, artes plásticas, é necessário ter pelo menos as seguintes perspectivas ou horizontes, em ordem: ler e observar; pensar e analisar; produzir no gênero ou no conhecimento específico; divulgar ou publicar; catalogar ou preservar ou numerar.

Se adicionarmos a isso que todo ser humano tem necessidades biológicas, de se alimentar, dormir e descansar, além de outras realidades sociais, geralmente desenvolver um trabalho remunerado, que muitas vezes não coincide totalmente com a produção ou o conhecimento ao qual se dedica ou a arte, sem esquecer que a família exige tempo e dedicação, e mais circunstâncias sociais, além de cuidar minimamente de si mesmo, e tudo o que a vida traz consigo.

Portanto, é impossível, no campo da produção, sem entrar em outros campos, que uma pessoa possa manter com harmonia suficiente todas as áreas da produção cultural, seja um conhecimento científico, filosófico, teológico, artístico, literário… se quisermos preservar todo esse material.

Se a sociedade, porque penso que também é dever da sociedade, quer preservar, digamos, a vasta produção de um autor ou autora, ou em um ramo do conhecimento, tem que buscar sistemas de coleta, preservação, estudo, análise, indexação, catalogação de todo esse material que as pessoas produzem. Isso vai além dos livros editados com ISBN; inclui uma infinidade de folhas, notas, esboços, ideias, sugestões, parágrafos, etc., que podem ser essenciais para o avanço dessa ciência ou arte.

Não sei se é verdade, mas li há algum tempo que os papéis ou rascunhos de Einstein, que ele deixou em cadernos e notas soltas, eram examinados e estudados por estudantes de pós-graduação, para tentar recuperar algumas ideias ou sugestões, para analisar o desenvolvimento de algumas de suas equações ou formulações. Se minha memória não me falha, considera-se que Einstein, sozinho ou com outros autores, assinou e publicou 271 artigos científicos. Sabemos que alguns artigos mudaram a concepção do mundo, e os resultados de uns deles ainda aplicamos, não apenas na teoria, mas também na prática. Muitos dos dispositivos que usamos todos os dias, como celulares, por exemplo, não funcionariam sem algumas das derivações de algumas de suas equações ou teorias ou concepções.

O conceito de biblioteca para preservar livros, livros publicados com a legalidade vigente de cada momento, é claramente um conceito ultrapassado. É necessário, mas já existe a necessidade, em muitos campos, do conceito de Arquivo e Centros Documentais, em diferentes áreas de conhecimento, ciências, artes, literatura, que complementam a Biblioteca. Ou, mais ainda, dentro da Biblioteca, que já preserva, digamos, uma infinidade de publicações, em sentido amplo, não apenas livros em papel e material em papel, mas também áudios, vídeos, jogos, etc. Já se preservam todos os tipos de informações ou documentos que entram nessa categoria geral de documentos de todo tipo.

Biblioteca Nacional de España, em Madrid

Hoje, já é uma realidade, embora incipiente, que as bibliotecas começam a conservar uma infinidade de materiais, arquivos de autores em diferentes ramos, arquivos coletados com algum critério por uma pessoa, de algum aspecto da realidade. Assim, por exemplo, a BNE está coletando, conservando e arquivando centenas ou milhares de vinhetas de diferentes cartunistas da segunda metade do século vinte. Assim, dizem que as Universidades Americanas convidam seus alunos, que tiveram uma trajetória importante em um ramo, que - se desejarem - deixem papéis, documentos, cartas, fotografias, livros, manuscritos e outros materiais, formando o conceito de “legados ou subarquivos”, os quais se inserem na estrutura geral dessas bibliotecas e dessas universidades.

Às vezes, chega à minha consciência a lembrança de que em todas as cidades, com mais de uma quantidade de habitantes nos tempos de Roma, existia pelo menos uma biblioteca pública, além das privadas. Em algumas cidades, bibliotecas com milhares ou dezenas de milhares de manuscritos. Não me refiro apenas à famosa de Alexandria, mas a todas que estavam espalhadas pela República ou pelo Império. Até mesmo em algumas termas públicas também. E quase tudo se perdeu. Acredito que as bibliotecas, que conservam tudo, os Arquivos Documentais Culturais e os Centros Documentais Culturais, estão tentando fazer com que a produção cultural não se perca, que a letra pequena - isso que denominamos, cartas, manuscritos, notas, fotografias, etc. - também não se perca.

Já é tempo de todas as bibliotecas locais, municipais, provinciais e regionais do nosso país, independentemente de serem gerais ou especializadas, refletirem sobre a conservação e anexação de arquivos e centros documentais, assim como as grandes bibliotecas nacionais ou estaduais já estão fazendo. Essas bibliotecas devem começar a preservar “caixas e metros lineares” de autores, que podem não ser de primeira linha, mas que têm sido influenciados pelo sol de sua localidade e província por dez ou cinquenta anos. É hora de valorizar esses autores e preservar seu legado para as futuras gerações. Talvez, não sejam os grandes papas da cultura nacional de suas especialidades, mas são dignos que suas obras e suas “letras pequenas” sejam conservadas em seus lugares de residência e de nascimento. será que eu começarei a ver essa realidade?

Original disponível em: https://diariodigital.org/producir-o-catalogar/


Jason Lima


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domingo, 3 de março de 2024

ARENA LITERÁRIA: RIVALIDADES ENTRE AUTORES - O CASO CAPOTE-VIDAL

A literatura, apesar de ser uma forma de expressão artística, não está imune às complexidades das relações humanas, e a rivalidade entre autores é um fenômeno expressivo desse universo criativo. O embate entre escritores, muitas vezes público, encontra suas origens em uma complexidade de fatores que vai além do simples desejo de reconhecimento. 



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Um dos motores primordiais das rivalidades literárias é a competição incessante por atenção, prêmios e reconhecimento. Em um campo onde o destaque é muitas vezes escasso, autores podem se encontrar disputando o mesmo espaço de visibilidade, especialmente quando seus estilos ou temas são comparáveis.

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O papel do ego também não pode ser subestimado. Autores frequentemente investem uma parte significativa de si em suas obras, e o orgulho associado a essas criações pode torná-los sensíveis a críticas e ressentidos quando a atenção se volta para outros. A conquista de um autor pode despertar a inveja do outro, especialmente quando o sucesso alcançado é almejado por ambos. A incapacidade de separar o êxito de um colega do próprio potencial pode desencadear hostilidades e rivalidades.

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Além disso, a diversidade de visões de mundo e abordagens criativas entre os autores é vasta. Conflitos podem surgir quando há choques em estilo, gênero literário ou abordagens aos temas. A concorrência pela originalidade pode se tornar uma fonte de tensão.

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Questões práticas, como disputas editoriais, royalties ou críticas negativas, podem adicionalmente desencadear tensões. O âmbito profissional muitas vezes se entrelaça com o pessoal, e as discordâncias sobre contratos ou revisões de obras podem se transformar em rivalidades duradouras.

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Ademais, a intensidade e paixão frequentemente associadas aos escritores podem contribuir para choques e rivalidades. Personalidades fortes podem colidir, especialmente quando há divergências fundamentais na abordagem à escrita ou na interpretação de questões literárias.

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O embate entre dois gigantes literários, Truman Capote (1924-1984) e Gore Vidal (1925-2012), vão além das páginas de seus livros, tornando-se em uma saga de rivalidade intensa e desavenças públicas. 

Ambos inegavelmente brilhantes, Capote e Vidal construíram carreiras que se relacionavam e também se chocavam de maneira espetacular. Suas trajetórias paralelas, marcadas por sucessos literários precoces, como Breakfast at Tiffany's (Bonequinha de Luxo), de Capote, e Myra Breckinridge, de Vidal, pavimentaram o caminho para uma rivalidade que ultrapassou a simples competição por leitores e críticos.

Truman Capote (1924-1984)

A tensão entre os dois autores atingiu seu ápice em 1975, quando Vidal processou Capote por difamação. O episódio, desencadeado por uma narrativa comprometedora de Capote sobre Vidal em um jantar com os Kennedys, expôs as fissuras dessa relação tumultuada. 

A rivalidade não se restringiu às palavras escritas, estendendo-se a confrontos públicos que envolviam insultos e provocações. Esses embates públicos aguçaram a curiosidade do público e afetaram a percepção das obras desses autores.

A desavença entre Capote e Vidal não foi apenas uma exibição de egos literários, mas também teve implicações práticas. A atenção dedicada a suas desavenças e os recursos despendidos em processos judiciais podem ter desviado suas mentes criativas da escrita, impactando a qualidade e o foco de seus trabalhos. A reputação pública desses autores também foi moldada por essa guerra verbal, influenciando a maneira como eram percebidos pelos leitores e pela crítica.

Gore Vidal (1925-2012)

A rivalidade entre Capote e Vidal criou alianças e inimizades dentro do cenário literário. Outros escritores e figuras públicas escolheram lados, solidificando a divisão entre os apoiadores de Capote e de Vidal. Essa dinâmica afetou as oportunidades de publicação e colaboração e influenciou a forma como seus legados literários foram construídos.

A eterna desavença entre Truman Capote e Gore Vidal, além de proporcionar um espetáculo público memorável, traz à lume uma boa reflexão sobre a complexidade das relações humanas com seus egos, invejas, distrações e prioridades.


Jason Lima


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O CICLO INFINDÁVEL DA INFLUÊNCIA DE DRUMMOND

A literatura é marcada por um jogo de influências que se unem ao longo do tempo. Muitos autores, ao iniciarem sua escrita, são guiados e inspirados por aqueles que os precederam. Esse é um caminho de aprendizado, uma exploração das palavras e uma busca por uma voz própria. Na literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade é um poeta cuja obra supera gerações. Sua influência é tão vasta que se torna um ponto de partida para inúmeros escritores. Um desses discípulos da poesia drummondiana foi o também excepcional poeta e escritor maranhense Ferreira Gullar.

Carlos Drummond de Andrade

Ferreira Gullar absorveu a técnica poética de Drummond e a vida tão poeticamente diária que caracteriza os textos drummondianos. Talvez um exemplo claro dessa absorção poética seja o poema "Não há vagas", do poeta maranhense.

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Veja a seguir a crônica de Ferreira Gullar em que ele mostra quão influente foi em sua vida Drummond.

DRUMMOND, UMA PARTE DE MIM

Ferreira Gullar

Como se sabe, nossa vida não é só nossa, uma vez que, além daquela parte que individualmente vivemos, há partes que outros viveram, como dizia um amigo que gostava de beber: “uma parte de minha vida eu vivo, outra parte me contam”. Claro, o dele era um caso especial, de amnésia alcoólica mas eu mesmo, que não costumo tomar porres, de vez em quando ouço de alguém uma parte de minha vida que não me lembro de ter vivido.

E assim também vivo a vida dos outros, ou seja, sem que este outro saiba, que entrou na minha vida e até mudou a minha vida. Foi, por exemplo, o caso de Carlos Drummond de Andrade que nunca tinha me visto mais gordo quando, em 1949, li Poesia até agora, livro que reuniu todos os seus livros anteriores.

Imagine o leitor que eu, nascido e criado em São Luís do Maranhão, mal ouvira falar em poesia moderna. Até bem pouco tempo, minha leitura era Bilac, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, sem falar em Camões, Gonçalves Dias e Castro Alves, entre outros. Poesia para mim, portanto, falava de anjos, estrelas, regatos e flores. Abro então o livro de Drummond e leio: “Lua diurética”. Levei um susto. Mas isto é poesia? – perguntei-me. “Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão”. Fechei o livro desapontado mas, em seguida, reconsiderei e decidi informar-me sobre a nova poesia.

Fui para a Biblioteca Pública e lá descobri O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade e Cinzas do purgatório, de Otto Maria Carpeaux. Lendo-os, compreendi o que era a tal poesia moderna e voltei a Drummond já menos preconceituoso. Foram os primeiros passos para compreender o grande poeta que estava naqueles poemas, em que se misturavam ironia, irreverência e contida emoção.

A poesia de Drummond, de certo modo, mudou minha vida, porque me revelou uma nova poesia, que não era mais a dos anjos e das estrelas, mas a da vida cotidiana. A poesia que estava na sopa, tomada em algum restaurante sórdido, por alguém com dor de corno. Aprendi que o poeta moderno reconhecia-se um homem comum, igual aos demais e que encontrava a poesia em situações que qualquer outra pessoa poderia viver.

Tornei-me leitor assíduo de Drummond, lia e relia seus poemas no meu pequeno quarto naquela casa da rua Celso de Magalhães, nº 9, em São Luís. Lia também Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Mário de Andrade. Mas foram os poemas de Sentimento do mundo e A rosa do povo, que me marcaram profundamente e me revelaram uma nova maneira de ver a vida e falar dela.

Transferi-me depois para o Rio mas não o procurei, nem a ele nem a nenhum poeta famoso. Um dia, na livraria Agir, lhe fui apresentado por José Condé. Conversava com outros escritores e mal tomou conhecimento de mim. Achei natural, pois já sabia que era tímido e pouco expansivo. Eu não era muito diferente. Impressionaram-me os seus olhos: duas pequenas lentes azuis que pareciam boiar soltas entre as pálpebras. Outra vez, topei com ele ao entrar no elevador do Correio da Manhã, na rua Gomes Freire. Ele saía apressado e mal me viu. A última vez que o encontrei foi no enterro de Vinicius de Moraes, muitos anos depois; criticava acidamente a medicina que não soubera curar com presteza o herpes que lhe havia tomado parte do rosto. Certo dia, um jornal noticiou que eu pretendia candidatar-me à Academia Brasileira de Letras. Alguém ligou para ele e, ao referir-se à notícia, ouviu dele o seguinte comentário: “Duvido. Se bem conheço Gullar, isto não passa de fofoca”. Mal sabia que, neste particular, eu lhe seguia o exemplo.

A sua morte me deixou revoltado. Antes de tomar um avião que me levaria a Brasília, passei em seu velório no cemitério São João Batista. Quando os jornalistas me indagaram a respeito, respondi indignado, como se me houvessem agredido brutalmente. Eu estava em estado de choque, o Brasil havia perdido o seu grande poeta. 

Ferreira Gullar


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 Jason Lima


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