segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

CAROLINA MACHADO DE ASSIS

  O encontro

A segunda metade do século XIX no Brasil foi marcada por influências literárias e embates entre figuras proeminentes da cena intelectual. José Feliciano de Castilho, vindo de Portugal, encontrou solo fértil no Brasil imperial ao ser convidado, segundo alguns historiadores e biógrafos, pelo próprio Imperador Dom Pedro II, para combater a influência de José de Alencar nas letras brasileiras. Junto a Castilho, estava um grupo de literatos e artistas portugueses, incluindo Emilio Zaluar, Ernesto Cybrão, e Artur Napoleão e Faustino Xavier de Novaes, poeta satírico recém-chegado do Porto. Machado de Assis, figura querida por Castilho e Alencar, transitava habilmente entre esses dois polos literários.

Foi nesse contexto que Carolina Augusta Xavier de Novaes, irmã de Faustino Xavier de Novaes, conheceu Machado de Assis, então com vinte e sete anos. Sua chegada em 1866, aos trinta e dois anos, trouxe uma atmosfera vibrante às reuniões na casa do Rio Comprido, local de encontro desses literatos. A descontração desses encontros, permeada de música e conversas, proporcionou o cenário propício para o florescimento de um romance entre ambos. A agradável personalidade de Carolina, sua inteligência aguçada e a distinção em suas maneiras conquistaram o tímido e recluso Machado.

O casamento só veio a ser formalizado no final de 1869. No entanto, esse processo foi marcado pela oposição veemente da família de Carolina, os Novaes, que se opunha ao casamento, principalmente devido à resistência em aceitar a união com um homem negro, sendo a cor de Machado o principal argumento. Contudo, a união resistiu, apesar da firme oposição dos Novaes, refletindo a determinação e superioridade de espírito de Carolina. Em 12 de novembro de 1869, Machado de Assis e Carolina Xavier de Novais formalizaram sua união, contando com o apoio de amigos que se ergueram contra a oposição dos irmãos de Carolina.

Esse casamento desafiador pelas circunstâncias sociais e familiares da época consolidou a união entre talvez o casal mais conhecido do cenário literário brasileiro e destacou a força de vontade de Carolina e a profundidade do vínculo que compartilhavam.

 

A fundamental Carolina

Carolina foi esposa, amiga e colaboradora de Machado. Ela exerceu função crucial no desenvolvimento intelectual do escritor. Culta e refinada, influenciou o interesse do marido pela literatura inglesa, fato perceptível na segunda fase da obra machadiana. Sua apurada expressão em português também lapidou a linguagem utilizada por Machado em seus escritos. Inicialmente autodidata, o autor de "Dom Casmurro" apresentava algumas deficiências nas particularidades da língua, especialmente na ortografia e na colocação pronominal. A convivência diária com Carolina, habituada ao rigor gramatical de autores portugueses, serviu de orientação segura, combinando o estilo de Machado de Assis com a correção idiomática lusitana.

O hábito matutino de escrita de Machado era complementado pelo papel fundamental de Carolina como revisora. Ela lia as novas páginas, fazia anotações sobre possíveis distrações e sugeria modificações. À noite, em uma comunhão de espírito, eles discutiam a obra em preparo, revelando uma parceria na qual Carolina se integrava plenamente ao mundo literário de Machado. A relação entre Machado de Assis e Carolina não se limitou a um casamento, mas representou uma colaboração profunda que enriqueceu a vida pessoal do casal e o cenário literário brasileiro do século XIX. O romance deles simboliza uma união de afetos e uma sinergia intelectual que contribuiu significativamente para o desenvolvimento do estilo literário singular de Machado de Assis. Sua serenidade, abnegação e sensibilidade destacam-na como uma figura exemplar, cujas qualidades ultrapassam estereótipos de gênero e a elevam ao patamar de musa inspiradora.

 

Livros e flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?

 Falenas. Machado de Assis.


O casal, devido à dificuldade de conceber filhos biológicos, optou pela adoção de uma cadelinha, a qual denominaram Graziela.

 

A madrasta

De maneira abrupta, após o casamento, Machado de Assis rompeu os laços com Maria Inês, sua madrasta. Não seria despropositado inferir que subjacente a esse rompimento repousasse certo sentimento de inferioridade, que o impelia a integrar-se nos círculos socialmente superiores que passara a frequentar.

Inicialmente, esse afastamento não parece ter afligido profundamente Machado. Todavia, com o passar do tempo, germinou discreto remorso, materializado artisticamente em seus romances iniciais em que pulsa a tensão insolúvel entre origem modesta e a ascensão social, bem como os dilemas morais daí resultantes.

Abandonada pelo enteado, Maria Inês encontrou abrigo na casa de Eduardo Marcelino da Paixão. Não obstante, Machado não a relegou ao completo esquecimento. Certa ocasião, ao sair precocemente de uma livraria, a Coelho Netto explicou que se dirigia a um funeral, convidando-o a acompanhá-lo. Ao final do trajeto, chegaram a uma residência singela, onde estacionaram. Ali, Machado velou comovido uma senhora idosa. Ao partir, não conseguiu conter a comoção: "Era minha mãe", revelou ao amigo.

Essa declaração carregada de emoção, era a tímida reparação pela ausência nos anos precedentes. Sua perturbação íntima exigia a presença de uma testemunha nesse adeus derradeiro. Assim, mesmo após prolongado afastamento, Maria Inês permaneceu vínculo afetivo na alma atormentada de Machado.

 

O ciúme

E é bem conhecido o ciúme que Machado tinha de Carolina. Segundo relatos de pessoas próximas, o escritor nutria por Carolina um apego possessivo. Esse comportamento revela sua natureza introspectiva e desconfiada, avessa ao convívio social. Seria aí um gérmen de Dom Casmurro? Em seu livro de poesias Falenas, de 1870, o escritor publicou este poema, que reflete seu sentimento tão caro:

 

O verme

 Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.
 
Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.
 
Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento.
 
Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.

FalenasMachado de Assis.


O jornal

A prática jornalística desempenhou papel formativo fundamental na trajetória de Machado de Assis. Sua longa vivência nos periódicos, iniciada na juventude, propiciou o amadurecimento técnico e estilístico do escritor. A necessidade de redação ágil e concisa para o público amplo do jornalismo imprimiu em sua prosa as marcas da flexibilidade, da leveza e da elegância.

Além de apurar seu instrumento literário, a atuação jornalística foi igualmente decisiva para alçá-lo à projeção nacional. A presença assídua de sua assinatura na imprensa periódica familiarizou seu nome nos mais diversos segmentos sociais e regiões do país. Muito antes de suas grandes obras ficcionais, Machado já desfrutava de prestígio nos meios literários graças a seus escritos jornalísticos.

Outro aspecto a destacar refere-se à variedade de temas e formas explorados por Machado nas páginas dos periódicos. Sua incursão no jornalismo da moda, voltado ao público feminino, por exemplo, ampliou seu leque de registros e enredos, gerando reflexos em sua produção literária. Essa flexibilidade auxiliou na configuração de uma obra multifacetada e cosmopolita.

O ápice de seu reconhecimento ocorreu em 1897, quando se tornou o primeiro presidente da recém-criada Academia Brasileira de Letras. A eleição para liderar um seleto grupo de ilustres homens de letras consagrou de vez seu estatuto ímpar na cena cultural do país. Nesse percurso bem-sucedido, a trajetória no jornalismo exerceu ação fundamental, seja no desenvolvimento de recursos expressivos, seja na obtenção de projeção intelectual junto a setores estratégicos.

 

O leito derradeiro

Porém, a alegria não duraria para sempre na vida do Bruxo do Cosme Velho. O falecimento de Carolina, em 1904, abriu o capítulo mais doloroso na existência de Machado de Assis. Após trinta e cinco anos de venturosa união conjugal, o escritor viu-se subitamente privado da companhia da esposa, amiga e confidente. Em busca de ares mais salutares para a saúde debilitada de Carolina, o casal havia se transferido para Nova Friburgo meses antes. Porém, nem o novo cenário foi capaz de deter o agravamento do estado de saúde da companheira de Machado.

Desprovido das distrações propiciadas pela presença da esposa, Machado mergulhou na mais absoluta solidão após sua partida. Buscou algum conforto na companhia de amigos íntimos, como Mário de Alencar e Joaquim Nabuco, a quem passou a externar seus sentimentos com incomum transparência.

Na residência do casal, Machado conservou intactos os pertences e lembranças de Carolina, como se ainda estivesse viva. Essa atitude denota a tentativa inconsciente de mitigar a dor da ausência por meio da preservação simbólica da presença da falecida companheira. Atitude sentimental semelhante a que seu personagem Bento Santiago desejou fazer em Dom Casmurro ao restaurar quando adulto a casa em que morou quando criança.

O sofrimento gerado por essa perda irreparável sensibilizou-o. Seu estilo literário e seus relacionamentos pessoais refletiram, daí em diante, uma coloração melancólica antes inexistente. Composições como o poema "A Carolina", de 1906, testemunham essa mudança de tom, exprimindo uma emoção raramente manifesta na escrita machadiana.


A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


No romance Memorial de Aires, Machado de Assis faz uma evocação de sua amada Carolina, entrelaçando sua história pessoal com a narrativa dos personagens D. Carmo e Aguiar.

Assim, o infausto falecimento de Carolina expôs matizes complexos da personalidade de Machado, abrasando seu espírito introspectivo e gerando reflexos profundos em seu íntimo, em sua arte e em seu círculo de sociabilidade.

Para finalizar, quero deixar - além das referências abaixo listadas - a indicação de um livro que mescla ficção com a biografia de Carolina: O livro de Carolina: a improvável biografia de Carolina Machado de Assis, lançado pela editora Libretos, em 2021.



Jason Lima
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Referências:

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.

MATOS, Mário. Machado de Assis: o homem e a obra - os personagens explicam o autor. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.


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