sábado, 2 de março de 2024

UMA REVOLUÇÃO NARRATIVA NO JORNALISMO

O New Journalism, ou Novo Jornalismo, ou ainda Jornalismo Literário, surgiu nos anos 1960 como um movimento que revolucionou a maneira como as histórias eram contadas no jornalismo. Essa abordagem inovadora combinava técnicas literárias com a objetividade das notícias, resultando em uma narrativa mais pessoal, envolvente e subjetiva. 

Embora o termo New Journalism tenha sido codificado por Tom Wolfe em 1973, suas raízes podem ser rastreadas até Truman Capote em 1956. Capote propôs uma abordagem mais imaginativa e lírica da reportagem, permitindo que jornalistas se inserissem na narrativa. Essa fusão entre jornalismo e técnicas literárias criou as bases para um novo modo de contar histórias.

Truman Capote


Jornalismo Literário surgiu no contexto da contracultura nos Estados Unidos, trazendo consigo um discurso crítico e interventivo na mídia. O movimento desafiou as normas da grande imprensa e buscou inspiração no jornalismo do século XIX e início do século XX. A abordagem do Novo Jornalismo representou uma ruptura com a narrativa jornalística tradicional, aproximando-se de uma escrita mais literária.

O New Journalism introduziu uma série de técnicas narrativas que transformaram a maneira como as histórias eram apresentadas. A descrição detalhada do ambiente, a construção cena a cena, diálogos autênticos, o uso da terceira pessoa e a contextualização social tornaram-se marcas registradas desse estilo. 

Uma das contribuições mais significativas do Novo Jornalismo foi sua capacidade de transmitir a humanidade e a intimidade dos personagens. Ao empregar técnicas literárias, os jornalistas conseguiam gerar compreensão, empatia e identificação com os fatos narrados. Isso aproximava o leitor da notícia e ampliava a compreensão do público sobre os eventos e personagens envolvidos.

Apesar de sua influência, o Jornalismo Literário não escapou de críticas. A natureza subjetiva do estilo e questionamentos sobre sua classificação como um gênero distinto foram pontos de debate. O movimento ganhou popularidade nas décadas de 1960 e 1970, mas experimentou um declínio nos anos 1980.

A evolução do New Journalism deu origem ao The New New Journalism, um movimento literário que continua a tradição do jornalismo narrativo. Essa nova geração foca a não ficção baseada em reportagens detalhadas e narrativas conduzidas por histórias longas. Diferentemente das narrativas extravagantes de Tom Wolfe, o New New Journalism explora experiências cotidianas, buscando a corrente ficcional que flui sob a realidade. O foco se desloca, pois, para experiências cotidianas, explorando a ficção entrelaçada na realidade. Houve uma inovação das técnicas de imersão, como a fez Ted Conover, que trabalhou como guarda prisional e viveu entre os coiotes na fronteira do México para escrever os livros Newjack: Guarding Sing SingCoyotes: A Journey Across Borders with America's Mexican Migrants, respectivamente. 

Portanto, o New Journalism representou uma ruptura significativa na forma de se fazer jornalismo, incorporando elementos literários para contar histórias com maior profundidade e impacto. Apesar das críticas e do declínio em sua popularidade, o movimento influenciou profundamente o jornalismo contemporâneo, inspirando novas gerações de jornalistas a explorar as possibilidades da narrativa na construção de reportagens envolventes e humanizadas. O seu legado reside na abertura de caminhos para uma maior experimentação e inovação na prática jornalística, reconhecendo o poder da narrativa para conectar o público com os fatos e personagens de forma mais profunda e significativa.

Eduardo Bueno, no livro Textos contraculturais, crônicas anacrônicas e outras viagens, lançado pela L&PM Editores, traz um bom texto sobre a sua perspectiva do New Journalism. A seguir, coloco-o para apreciação.


O velho new journalism

Os perfis de Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer, pais fundadores do estilo literário que concedeu aos textos de não ficção as técnicas antes aplicadas apenas na ficção.

Eduardo Bueno

Quando nasceu o new journalism? Pois o new journalism pode muito bem ter nascido em 16 de novembro de 1959, no instante em que o escritor (e eventualmente jornalista) Truman Capote abriu o New York Times, à hora do desjejum (no caso dele, em torno de uma da tarde), em seu elegante apartamento em Brooklyn Heights, e deparou com uma pequena notícia, perdida em meio à página 39, cujo título dizia: “Fazendeiro rico e sua família são barbaramente assassinados”. Acontecera em Holcomb, uma cidadezinha fincada nos confins varridos pelos ventos do Kansas, no dia anterior. O lead: “Um bem-sucedido plantador de trigo, sua mulher e os dois filhos foram assassinados com tiros à queima-roupa, depois de terem sido amarrados e amordaçados”.

O parágrafo, lacônico, espartano, quase indiferente, vincou profundamente Capote – na época, com 35 anos, já o autor consagrado de Outras vozes, outros lugares e Bonequinha de luxo, figura fulgurante do jet set. Seis anos, mais de duzentos depoimentos e quatro mil páginas datilografadas depois, ele estava pronto para lançar, com soberba e empáfia, A sangue frio, o livro que desafiadoramente batizaria como “o primeiro romance de não ficção da história”.

Mas o new journalism pode ter nascido também em 20 de abril de 1963, quando Tom Wolfe, então repórter do New York Herald Tribune, enviou, depois de passar a noite inteira datilografando-o loucamente, aquilo que ele próprio chamou de “um simples memorando”, destinado ao diretor da revista Esquire, e cuja primeira frase – “lá vem (Vruuum! Vruuum!) essa caranga aerodinâmica envenenada (Rahghh!) fosforescente (Thphhhhh!) fazendo a curva (Brummmmmmmmmmmm!)” – é considerada, por assim dizer, o “faça-se a luz” do new journalism. Mais tarde, o artigo virou livro, The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby, e o “novo jornalismo” estava transformado em evidência inarredável.

Mas também é justo afirmar que o new journalism se materializou pela primeira vez em setembro de 1957, quando Norman Mailer publicou, nas páginas do Village Voice – jornal que ajudara a fundar em 1955 –, um longo, sombrio, sinuoso ensaio, The White Negro, sobre a rebelião dos jovens marginais norte-americanos (inspirada pela geração beat). Era intelectualizado demais, reflexivo demais – mas pelo menos conspurcava e desavergonhadamente arranhava, no tema e no estilo, o verniz acadêmico do gênero (“o ensaio”). Mailer saíra às ruas e entrevistara os garotos que rebatizou de “brancos negros”, de “humanistas radicais”, os quais, julgava ele à época, poderiam liderar “a revolução”. O tema era “novo”, o estilo era audacioso, mas seria “jornalismo”?

Os anos passaram – o novo jornalismo tornou-se velho (cronológica, não estilisticamente) –, Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer consagraram-se como autores tão grandiosos quanto os próprios egos e, no fim das contas, ficou mais ou menos estabelecido que quem inventara o tal new journalism fora mesmo Tom Wolfe com sua “baby aerodinâmica cristalizada como um floco cor de tangerina”. Todos concordaram – menos Tom Wolfe, é claro. Para ele, o “novo jornalismo” era tão velho quanto a prosa de Daniel Defoe, ou a de Balzac, Dickens e Mark Twain. Se alguém redescobrira o estilo, as honras então cabiam a Gay Talese e a seu artigo sobre o boxeador Joe Louis, publicado pela Esquire no outono de 1962. O ego de Wolfe é monumental, mas sua disposição de permanecer gauche e eternamente do contra é ainda maior.

Tom Wolfe


O que vem a ser new journalism? Pois bem: trata-se, pura e simplesmente, da aplicação das técnicas ficcionais a textos de não ficção. Seu objetivo, na definição do próprio Wolfe – avalizada pelos companheiros/concorrentes –, é descrever a realidade tão detalhada e fielmente quanto possível, conferindo a tal descrição um tratamento até então destinado exclusivamente ao romance ou ao conto. Isso, e mais: descobriu-se que um artigo jornalístico podia – deveria, na verdade – recorrer a todos os artifícios literários (diálogos, monólogos interiores, teorizações ensaísticas), simultaneamente e dentro de um espaço breve, capturando o leitor, emocional e intelectualmente. Nada mal. Mas bem difícil de concretizar.

Onde nasceu o new journalism? A sangue frio foi publicado em capítulos pela revista New Yorker, antes de virar livro. Antes de virar livro, The Kandy-Kolored... foi publicado em capítulos pela revista Esquire. O mesmo se passou com The White Negro, que, antes de ser incluído numa coletânea de ensaios de Mailer, foi publicado pelo semanário The Village Voice. Ou seja, o new journalism nasceu no seio do jornalismo – porém em revistas ou em jornais alternativos. Um tanto distante da grande imprensa, portanto.

E por que nasceu o novo jornalismo? Porque a literatura americana da virada dos anos 60 se revelou incapaz de acompanhar as vertiginosas mudanças culturais e comportamentais da nação. E a nação queria um novo texto, um novo estilo, um novo... jornalismo. Saul Bellow, John Updike, Philip Roth tremeram na base com a chegada dos “novos bárbaros”, que de imediato lhes roubaram a cena.

Respondidas as perguntas básicas e elementares do velho jornalismo – “quando, onde e por quê?” – é hora de saber “quem” lançou os alicerces do estilo que mudou o jeito de contar a história, e “como” isso foi feito.

O sangue quente de Capote

Truman Capote foi o Marcel Proust da era pós-macarthista, o Flaubert dos loucos anos pop, um artífice da palavra, condenado a viver na época em que a palavra estava sendo maculada, humilhada e ofendida, virada pelo avesso, travestida pelo avanço desmedido da publicidade, pela voracidade da mídia, pela própria futilidade dos discursos vazios da política e da comezinha vida cotidiana. Truman Capote foi um estilista meticuloso que nasceu atrasado mas se dispôs a registrar, com requinte e minúcia, a crônica das décadas que Tom Wolfe chamou de “púrpuras”: os anos 60 e 70. Foi um jet setter que amou e odiou o jet set, embora soubesse – ou talvez por isso mesmo – que jamais poderia viver sem jantares suntuosos, festas de arromba, cruzeiros a bordo de iates, villas à beira-mar. Truman Capote mordeu a mão que o alimentava e escreveu uma crônica doentiamente raivosa sobre o jet set. Truman Capote nunca foi exatamente um jornalista, mas mudaria para sempre a história do jornalismo ao redigir A sangue frio, seu “romance de não ficção”.

Ele estava submerso numa crise profissional quando abriu o New York Times naquela histórica manhã de 16 de novembro de 1959 e deparou com a notícia da morte da família Clutter, no longínquo, impensável, quase mitológico Kansas – “tão remoto quanto a lua”. Depois de convencer William Shawn, o diretor da New Yorker, de que valeria a pena enviá-lo para Holcomb – o vilarejo onde o crime ocorrera – e também de dizer ao homem que “simplesmente” não encontrava um fim para o artigo de quarenta páginas que estava escrevendo sobre Moscou, Capote embarcou num trem rumo ao Meio-Oeste. Sua viagem resultaria, seis anos mais tarde, num dos mais profundos e perfeitos documentos da América dos anos 60. Muito mais do que isso: Capote foi capaz de dissecar até os limites impostos pela literatura, pela sanidade e pela própria realidade, os meandros da vileza humana e os desatinos do destino.

O domínio emocional de Truman Capote sobre o material verdadeiramente avassalador que ele foi capaz de colher em Holcomb (mais de duzentos depoimentos, duas cartas por semana durante cinco anos de correspondência ininterrupta com os dois assassinos, entrevistas com policiais, vizinhos, psiquiatras, agentes penitenciários, parentes de matadores e mortos), seu distanciamento engajado, sua precisão descritiva, sua acuidade psicológica, seu estilo jornalisticamente irretocável e literariamente refinado, o ritmo de sua prosa, a pulsação a um só tempo frenética e contida da história, suas reflexões sobre a gratuidade de um crime brutal, o peso devastador da mão do destino tal como Capote capturou-o – dando-lhe a forma na trajetória convergente dos assassinados e dos assassinos numa noite sem estrelas nas lonjuras desoladas do Kansas –, tudo isso fez de A sangue frio um clássico eterno. 

Quando o livro enfim foi publicado, em janeiro de 1966 – poucas semanas depois do enforcamento dos assassinos, Perry Smith e Dick Hickock, na penitenciária estadual do Kansas –, a máquina da mídia (revistas, TV, jornais e rádio) tornou-se uma banda gigante a ressoar uma só melodia: Truman Capote, Truman Capote. Inimigos e desafetos saíram à caça de supostas incorreções – ou “licenças poéticas” – num livro que Capote anunciara como “rigorosamente documental”. Mais: num livro que batizara acintosamente de “o primeiro romance de não ficção da história”.

Mesmo que houvesse deslizes factuais – e não havia: os candidatos a detratores do livro só conseguiram descobrir que o cavalo da filha de Clutter não tinha sido vendido “a um forasteiro”, mas a um fazendeiro da região –, A sangue frio já seria um dos mais admiráveis relatos da tragédia americana. Ao se revelar irretocavelmente exato depois de submetido a tantos repórteres transformados em detectores de mentiras, tornou-se um livro alquímico, capaz de transfigurar a realidade e desnudá-la em toda a sua – para sempre sua – inexorabilidade insondável e brutalidade gratuita.

Tom Wolfe no ônibus dos insensatos

Tom Wolfe é o Andy Warhol das letras. Ele incorporou as latas de sopa Campbell, as cintilâncias do neon, o tilintar do dinheiro fácil, o colorido faiscante do imaginário pop – Marilyns Monroes borradas, James Deans silhuetados, a pélvis balançante de Elvis – ao vocabulário contemporâneo e ao mundo fugaz (a partir dele apreendido e capturado mesmo em sua futilidade fugidia) do jornalismo diário – ou melhor, do “novo jornalismo” diário. 

Tom Wolfe inaugurou uma nova época e fez luzir em tons mais hipnóticos o sol nas bancas de revistas. Tom Wolfe não teve preguiça para nos mostrar quem lê tanta notícia. Ou pelo menos por que as lê. Tom Wolfe é o Frank Lloyd Wright da arquitetura verbal. Seus projetos foram sempre mais ousados, mais surpreendentes – e mais utilitários – do que os dos concorrentes. Tom Wolfe é um ladrão de casaca, sacando ideias mais rapidamente do que os presentes e usurpando da realidade os temas e os tons que, na mão de jornalistas comuns, se tornariam comuns e tediosos como eles próprios e, nas mãos de Wolfe, transformaram-se em histórias tão exemplarmente elucidativas como se fossem parábolas bíblicas. Tom Wolfe é o pai fundador de uma nova religião – cínica e excludente como o próprio coração da América.

Tom Wolfe transformou a América numa imensa, inesgotável pauta para seu “novo jornalismo”. Ao descobrir, no verão de 1967, que o país estava sendo percorrido pela mais alucinada das caravanas, pelos argonautas do delírio, por ciganos lisérgicos reunidos sob o manto protetor do escritor Ken Kesey, Tom Wolfe decidiu seguir-lhes a trilha e devastar-lhes a utopia. O resultado materializou-se naquele que muitos consideram o melhor livro de Wolfe antes da comédia humana nova-iorquina que é A fogueira das vaidades. O teste do ácido do refresco elétrico é o mais implacável retrato da era hippie, o mais sarcástico e o mais corrosivo, ainda que muitas de suas páginas sejam perpassadas por uma sutil complacência (talvez um disfarce para a autopiedade de Wolfe, extensiva à humanidade).

O estilo caleidoscópico, vertiginoso, relampejante de Tom Wolfe adaptou-se com perfeição à demencial odisseia liderada por Ken Kesey e seu ônibus dos insensatos. O teste do ácido do refresco elétrico foi lançado no Brasil em fins de 1993. Passou despercebido. Vendeu pouco, foi quase ignorado pelos jornais e precisa ser garimpado nas livrarias por leitores dispostos a transpor-lhe as fronteiras. Trata-se de um livro quase operístico, despretensiosamente épico, burlesco, redigido em pequenos estilhaços de prosa sempre incontida e com o texto tropeçando numa vertente de adjetivos que, de forma incompreensível, Wolfe consegue manter não apenas a seu serviço, mas a serviço da clareza e do prazer do leitor.

A saga de Ken Kesey prescindia de um cronista tão admirável. Era alucinante por si só. Kesey, ele mesmo um grande escritor – autor de Sometimes a Great Notion e do clássico Um estranho no ninho –, era um doidão convicto e ativista. Foi preso, fugiu para o México e voltou para os Estados Unidos a tempo de desfrutar do boom do psicodelismo. Desfrutar, não: deflagrá-lo. Kesey pintou um velho ônibus escolar de 1939 com as cores mais berrantes que o espectro poderia lhe oferecer, arrebanhou o bando mais demencial que pôde juntar, convidou Neal Cassady (o lendário Dean Moriarty de On the Road) para dirigir aquela banheira sobre rodas e o grupo de rock Grateful Dead para fazer a trilha sonora ao vivo. Kesey sentia-se engajado numa guerra santa: embeber a América em LSD. And take no prisioners.

Batizado Further (“Adiante” ou “Em frente” em tradução livre), o ex-ônibus escolar passou a conduzir outra espécie de professores e alunos: foi levado a rodar pelas estradas da Califórnia, no verão de 1964, parando em cidadezinhas, montando seu circo de som e luz – longos, loucos concertos gratuitos do Dead – para que os sacerdotes Kesey e Cassady e seus coroinhas do ácido pudessem distribuir LSD para quem quisesse. E para quem não quisesse também.

Tom Wolfe perdeu boa parte da viagem. Recuperou-a com entrevistas, cartas, consultas a filmes e fitas. Conquistou a simpatia de Kesey – algo virtualmente impensável. Pegou umas caronas no ônibus antes que ele fosse definitivamente banido, junto com o próprio LSD (até então legal), pela administração Reagan – na época esse sujeito era governador da Califórnia. Com o material que tinha nas mãos, Wolfe delineou um painel dolorosamente melancólico da “nova sociedade” que a garotada de Kesey julgava estar forjando. O ônibus nos é apresentado como palco de uma tragicomédia que repete o que o “mundo exterior” tinha de pior. Um microcosmo megalomaníaco e competitivo da América, embebido em ácido e cercado pelo coturno reluzente dos tiras por todos os lados.

Quando o ônibus de Ken Kesey se revelou apenas uma bad trip, Tom Wolfe já estava longe, diagnosticando, com o mesmo rigor cubista, alguma outra doença da América.

Norman Mailer espiona a CIA

Norman Mailer é o Cassius Clay da literatura americana, sempre decidido a vencer por nocaute e inclinado a bater sem piedade, mas com técnica e elegância. Ele nunca quis ser o Mike Tyson, cara! As frases de Mailer distribuem uma sequência avassaladora de jabs nos ângulos mais impertinentes do texto e uns quatro ou cinco diretos definitivos partem na busca incessante do plot exato e do ritmo correto da prosa. Mailer pega no fígado da literatura molenga. Norman Mailer é o Ernest Hemingway da era do napalm e do isopor. Sua escrita é máscula, tabagista, confessional, egocêntrica, competitiva, agressiva, neurótica, devassa, inconformista e parece estar, às vezes, exausta e incuravelmente neurótica. De qualquer forma, sempre dá um jeito de deixar o hospital sem ter recebido alta e voltar às ruas para circular por onde os anjos temem ser vistos. Norman Mailer é um garanhão: cercas não podem contê-lo. Rédeas e selas tampouco.

Norman Mailer


Não é só o texto de Mailer que se apresenta de maneira descaradamente heterossexual, narcisista e competitiva. O próprio homem é assim. Por isso, ele entrou cedo na perseguição incessante do “tema perfeito”, da pauta exata na hora e na busca do tom inatacável – os elementos que perpassam e definem a eterna competição entre os jornalistas norte-americanos dispostos a definir o espírito da época e a cara medonha do país. Quem terá ido mais longe do que ele no cumprimento dessa tarefa?

Norman Mailer narrou a corrida à Lua em pinceladas rápidas e cínicas, sem deixar o encantamento de lado (quase duas décadas antes de Tom Wolfe compor Os eleitos). Tornou a brutalidade do boxe um espetáculo de requinte gótico. Biografou Marilyn Monroe com a devoção exigida pelo grande sonho molhado da América. Revisitou o Vietnã com sua câmera detalhista e cruel. Acompanhou a efervescência política da década de 60 com o olhar cético e meticuloso do caçador comprometido apenas com a queda da presa. Penetrou na mente de um assassino com o mesmo e espantoso rigor de Truman Capote (ainda que o tenha feito duas décadas depois), em A canção do carrasco. Desafiou John Kennedy. Ficou milionário, obeso, famoso, intratável.

Em 1994, antes de contar o “evangelho segundo Jesus Cristo” [seu último livro publicado em vida, em 1997 – depois viria o póstumo O castelo na floresta, sobre a infância de Hitler, lançado só em 2007], Norman Mailer apontou sua carabina verbal de cano cerrado, acostumada a abater muitos elefantes, em direção à mastodôntica CIA, sua tromba enxerida, seus tentáculos e sua viscosidade pegajosa. Pela alça de mira de Mailer vislumbramos O fantasma da prostituta – Um romance da CIA. Trata-se de uma água-forte, impressa em tintas ácidas, feita para macular o papel e as reputações. É um livro tipicamente Mailer: espaçoso, loquaz, irado, imprudente, vesicatório. O velho Norman segue suas normas e nos transporta para a época da Guerra Fria – a Baía dos Porcos, as contrarrevoluções exportadas para a América Latina, África e Ásia, a corrida armamentista, o poder militar instalado no coração da Casa Branca, a inescrupulosidade e hipocrisia da democracia americana – só para nos lembrar que a besta sobrevive e que daqueles anos para cá nada mudou tanto assim. Ou talvez ele o tenha feito de forma tão eloquente, vitoriosa e épica (são mais de 1.300 páginas) apenas para deixar claro que ele próprio também não mudou tanto assim: continua sendo o grande, o arrogante, o inigualável, o único Norman Mailer.

10 de abril de 1994


 Jason Lima

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