domingo, 3 de março de 2024

O CICLO INFINDÁVEL DA INFLUÊNCIA DE DRUMMOND

A literatura é marcada por um jogo de influências que se unem ao longo do tempo. Muitos autores, ao iniciarem sua escrita, são guiados e inspirados por aqueles que os precederam. Esse é um caminho de aprendizado, uma exploração das palavras e uma busca por uma voz própria. Na literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade é um poeta cuja obra supera gerações. Sua influência é tão vasta que se torna um ponto de partida para inúmeros escritores. Um desses discípulos da poesia drummondiana foi o também excepcional poeta e escritor maranhense Ferreira Gullar.

Carlos Drummond de Andrade

Ferreira Gullar absorveu a técnica poética de Drummond e a vida tão poeticamente diária que caracteriza os textos drummondianos. Talvez um exemplo claro dessa absorção poética seja o poema "Não há vagas", do poeta maranhense.

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Veja a seguir a crônica de Ferreira Gullar em que ele mostra quão influente foi em sua vida Drummond.

DRUMMOND, UMA PARTE DE MIM

Ferreira Gullar

Como se sabe, nossa vida não é só nossa, uma vez que, além daquela parte que individualmente vivemos, há partes que outros viveram, como dizia um amigo que gostava de beber: “uma parte de minha vida eu vivo, outra parte me contam”. Claro, o dele era um caso especial, de amnésia alcoólica mas eu mesmo, que não costumo tomar porres, de vez em quando ouço de alguém uma parte de minha vida que não me lembro de ter vivido.

E assim também vivo a vida dos outros, ou seja, sem que este outro saiba, que entrou na minha vida e até mudou a minha vida. Foi, por exemplo, o caso de Carlos Drummond de Andrade que nunca tinha me visto mais gordo quando, em 1949, li Poesia até agora, livro que reuniu todos os seus livros anteriores.

Imagine o leitor que eu, nascido e criado em São Luís do Maranhão, mal ouvira falar em poesia moderna. Até bem pouco tempo, minha leitura era Bilac, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, sem falar em Camões, Gonçalves Dias e Castro Alves, entre outros. Poesia para mim, portanto, falava de anjos, estrelas, regatos e flores. Abro então o livro de Drummond e leio: “Lua diurética”. Levei um susto. Mas isto é poesia? – perguntei-me. “Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão”. Fechei o livro desapontado mas, em seguida, reconsiderei e decidi informar-me sobre a nova poesia.

Fui para a Biblioteca Pública e lá descobri O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade e Cinzas do purgatório, de Otto Maria Carpeaux. Lendo-os, compreendi o que era a tal poesia moderna e voltei a Drummond já menos preconceituoso. Foram os primeiros passos para compreender o grande poeta que estava naqueles poemas, em que se misturavam ironia, irreverência e contida emoção.

A poesia de Drummond, de certo modo, mudou minha vida, porque me revelou uma nova poesia, que não era mais a dos anjos e das estrelas, mas a da vida cotidiana. A poesia que estava na sopa, tomada em algum restaurante sórdido, por alguém com dor de corno. Aprendi que o poeta moderno reconhecia-se um homem comum, igual aos demais e que encontrava a poesia em situações que qualquer outra pessoa poderia viver.

Tornei-me leitor assíduo de Drummond, lia e relia seus poemas no meu pequeno quarto naquela casa da rua Celso de Magalhães, nº 9, em São Luís. Lia também Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Mário de Andrade. Mas foram os poemas de Sentimento do mundo e A rosa do povo, que me marcaram profundamente e me revelaram uma nova maneira de ver a vida e falar dela.

Transferi-me depois para o Rio mas não o procurei, nem a ele nem a nenhum poeta famoso. Um dia, na livraria Agir, lhe fui apresentado por José Condé. Conversava com outros escritores e mal tomou conhecimento de mim. Achei natural, pois já sabia que era tímido e pouco expansivo. Eu não era muito diferente. Impressionaram-me os seus olhos: duas pequenas lentes azuis que pareciam boiar soltas entre as pálpebras. Outra vez, topei com ele ao entrar no elevador do Correio da Manhã, na rua Gomes Freire. Ele saía apressado e mal me viu. A última vez que o encontrei foi no enterro de Vinicius de Moraes, muitos anos depois; criticava acidamente a medicina que não soubera curar com presteza o herpes que lhe havia tomado parte do rosto. Certo dia, um jornal noticiou que eu pretendia candidatar-me à Academia Brasileira de Letras. Alguém ligou para ele e, ao referir-se à notícia, ouviu dele o seguinte comentário: “Duvido. Se bem conheço Gullar, isto não passa de fofoca”. Mal sabia que, neste particular, eu lhe seguia o exemplo.

A sua morte me deixou revoltado. Antes de tomar um avião que me levaria a Brasília, passei em seu velório no cemitério São João Batista. Quando os jornalistas me indagaram a respeito, respondi indignado, como se me houvessem agredido brutalmente. Eu estava em estado de choque, o Brasil havia perdido o seu grande poeta. 

Ferreira Gullar


***

 Jason Lima


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