sábado, 9 de março de 2024

A MACA


Era um desses dias no hospital em que um quadro de vida e morte se desenhava com a crueldade de um esboço malfeito e rotineiro. Na sala de espera, os segundos pareciam se desdobrar lentamente enquanto famílias aguardavam, ansiosas, o horário de visitas. Uns olhavam os relógios, outros fixavam o olhar no vazio, todos compartilhando a mesma aquarela invisível da preocupação.

No meio desse cenário cauteloso de espera, uma família carregava o peso do luto. As notícias recentes haviam pintado seus semblantes com tonalidades opacas. O patriarca partira e deixara um retrato vazio, um silêncio na história familiar. Lágrimas, antes contidas, agora escapavam fazendo avenidas nas maquiagens e pavimentando tez tão já maltratada do tempo. Inundavam-se as lembranças e encharcava-se a esperança.

A morte era recente, mas o destino era inflexível. A família se levanta, tentando seguir adiante, mas uma única pessoa permanece. Na solidão, ela enfrenta o corredor do hospital, onde a realidade é cruelmente exposta. Uma maca avança, carregando um corpo que, em tempos passados, era o pai, o patriarca, o avô. Hoje, é apenas um corpo inerte, oculto sob um lençol branco. A dor é destruidora. O corpo que ali repousa já não é mais o guardião de histórias, o conselheiro, o sorriso nas fotografias antigas. É apenas matéria sem vida, um vestígio do que antes foi. A tristeza se materializa na visão do inimaginável: a vida se despe daquele que a habitava.

A maca segue seu caminho, levando consigo um corpo e a narrativa de uma família. As lágrimas solitárias da filha-testemunha evidenciam a tristeza que se manifesta no corredor. 

Momentos depois, a mesma maca retorna, agora vazia de tudo, exceto por um lençol solitário, desprovido do volume que há pouco encobrira.

O hospital, palco dessa tragédia tão costumeira para quem faz da morte e da vida um ofício, segue esboçando novos desenhos a cada dia. Os corredores testemunham a efemeridade da existência, em que lágrimas e sorrisos coexistem como os personagens de um quadro intangível, de um livro que há de ser escrito hora a hora. E, assim, mais uma família se despede de uma história, de uma lembrança, de um lençol em uma maca, nesse episódio trágico-familiar.

Jason Lima


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